domingo, 30 de setembro de 2007

chuvas

O primeiro dos muitos cursos preparatórios (para concursos) que frequentei visava aprimorar os meus conhecimentos em informática. As aulas tiveram início logo após a chegada do horário de verão, o que me agradava bastante, pois saía da escola às sete da noite e ainda existia sol: uma luz cristalina, quase diáfana, e ao respirar as brisas era possível antecipar o cheiro dos primeiros temporais do calor – aliás, quando parecia que ia chover e o céu ficava carregado, a luz ainda descia, irisada, por espaços entre as nuvens, mas depois essa mesma luz, ao ser devolvida às alturas, refletia-se nas nuvens e, até o anoitecer, pairava sobre a cidade uma claridade calma e esbatida.

Numa sexta-feira caiu um temporal tão forte que não pude ir para casa após o término da aula. Fiquei na frente dos computadores, respondendo mensagens e lendo notícias, por trinta minutos ou mais. Quando saí, ainda havia restos de chuva (agora uma água suja, lamacenta) escorrendo por canos e dutos que saíam dos telhados e das marquises das lojas. Lembrei-me do natal em que ganhei o primeiro videogame: na tarde recordada, tinha ido com o pai até o centro da cidade (não me lembro o motivo, talvez uma consulta ao dentista) e, quando estávamos na rua, começou a chover forte. Corremos e nos escondemos debaixo de uma marquise. Eu mal podia conter a ansiedade: queria voltar para a casa e enfrentar os mafiosos que tinham ocupado uma cidade dos anos 30 ou final da década de 20. O derradeiro confronto acontecia um cais e, apesar dos péssimos gráficos, eu podia sentir a salgada umidade do ar, o chão de madeira rangendo após cada passo, e as gaivotas vindo e depois retornando à distância de um céu branco, chuvoso e triste.

Voltou a chover e entrei no Senhor Hambúrguer. Pedi um sanduíche e uma soda. Um menino gordo começou a aprontar o lanche e, da chapa de grelhar hambúrgueres, ergueu-se um fumo que primeiro engordurou as paredes, depois ganhou as calçadas e então o cheiro de carne e bacon grelhados somou-se ao odor de chuva e lama. Quando terminei de comer, o temporal já tinha passado. Agora o maior desafio era evitar a água suja que as marquises despejavam na calçada. Tive nojo quando, descendo a Rua do General, pouco antes de cruzar a ponte, passei por quarteirões ocupados por prédios abandonados (pressenti os ratos nas sombras), pastelarias e pensões miseráveis. Começava o crepúsculo e, na fachada de um prédio de três andares, ardia, em letras de néon vermelho, a palavra HTL.


Cruzei a ponte – o rio era um fluxo de água marrom e selvagem – e cheguei à rodoviária. Mais do que úmido, o ar estava engordurado, sujo, viscoso. Em meio a uma névoa quase maciça de gás carbono, os ônibus chegavam à estação, muitas pessoas corriam para não perder a viagem, no salão de cortar cabelo um negro com um jaleco branco tinha um olhar entediado, um cachorro grande e magro e machucado andava para lá e para cá e inspirava medo em alguns transeuntes. Também avistei, tomando um táxi, uma rapariga dos tempos da faculdade. Foi o bastante para que eu me lembrasse de tudo o que sabia sobre ela. Evoquei os olhos verdes, o comportamento tido como promíscuo, o assombro que tomava conta de mim quando conversávamos, o mistério que envolvia o apartamento que ela ocupava na Rua Sebastião (a poucos metros do cinema e quase em frente ao Senhor Hambúrguer), o conto no qual eu a dizia que ela era bonita porque distante. E veio a idéia de que tudo – o assombro, o mistério, o encanto da promiscuidade e da distância, as ficções jamais consumadas – tinha fracassado.

2 comentários:

Paulo Bono disse...

publica que eu compro, mississipi.
grande abraço

Marilia Kubota disse...

Está em ponto de bala. Aqui no Brasil um crítico diz que escrever e´ a confissão do fracasso.
abraço