quarta-feira, 26 de setembro de 2007

os planos A e B

Cartago pediu uma cerveja mais escura e amarga e eu pedi uma cerveja normal. Dei o primeiro gole e veio uma náusea branda, quase imperceptível. Quis conversar sobre as meninas que pretendia ver à noite, mas continuei calado: começava a ficar ridículo falar de miúdas e das possibilidades de me entender com elas. Ainda assim, não deixei de mencionar um Plano A e um Plano B. O sábado era sem sol, quieto, e, do alto dos telhados, às vezes vinha um murmúrio – era o arrulhar ou o bater de asas de pássaros que alçavam vôo ou pousavam. Estávamos junto ao balcão do cinema da Rua Sebastião, o público para a sessão das quatro horas não chegava e, além de nós e das mulheres que serviam a bebida, não havia mais ninguém.

Eram cinco horas quando o sol deixou de se esconder atrás das nuvens e projetou figuras no chão do hall. Ao cheiro de poeira e mármore juntou-se o de terra e esse odor, por vezes, lembrava pólvora. Pagamos as bebidas, saímos e tomamos o rumo do salão de bilhar da Rua Santiago. Cartago afirmava estar bêbado e andávamos devagar. Mais confiante, eu detalhava os rostos e olhos e ombros e os contornos do seios por trás dos planos A e B.

O salão de bilhar também estava vazio e pegamos uma mesa nos fundos. Fizemos alguns comentários sobre aquela que parecia ser a amante ou filha do sujeito que administrava o lugar. Logo depois essa menina saiu por uma porta que não tínhamos avistado e foi se sentar junto ao balcão, perto de onde o suposto amante ou pai jogava cartas com um bêbado conhecido. Depois chegou a prostituta de pele escura e que sempre usava um chapéu de crochê. Ela também sentou-se junto ao balcão, mas não pediu nada, apenas começou a conversar com a adolescente. Depois entrou um grupo formado por rapazotes e raparigas (os meninos vestidos de negro, com camisetas t shirt estampadas com fotos de bandas de rock, e as meninas com no máximo quinze anos de idade, a maioria acima do peso, e algumas, além dos trajes escuros, tinham as unhas pintadas de negro). Eles pegaram a mesa ao lado e, como não sabiam se posicionar, volta e meia esbarravam em mim e Cartago. O sol tinha sumido mais uma vez e uma penumbra quente e espessa caiu sobre o lugar. O administrador acendeu as luzes e também ligou o rádio e sintonizou numa estação que tocava rocks que tinham feito sucesso há dez anos.

Quando o crepúsculo chegou sobre a cidade, passávamos no quarteirão do colégio onde havíamos estudado no final da década passada. Continuava igual, mas o lugar transformara-se na sede de um curso para enfermeiras. Até vimos algumas meninas de branco caminhando contra o lusco-fusco. O Pato, que ficava ao lado do velho colégio e que tinha abrigado as primeiras partidas de bilhar, era agora uma residência de dois andares. Corriam os últimos dias de agosto e, ao olhar para o telhado da casa do bispo e depois para a cúpula da catedral, soube que o calor tinha regressado (o vento quente e grosso a ponto de parecer imóvel levantava papéis abandonados nas calçadas, revoadas de andorinhas invadiam as copas das árvores, dos gramados da praça vinha – ansioso e áspero e familiar – o odor de relva e de terra queimada que não se percebe nos dias frios, enquanto o azul do céu, em vez de empalidecer, escurecia cada vez mais).

Cartago deixou-me em casa e combinamos que mais tarde sairíamos com o meu carro. Antes do banho, ainda liguei para um conhecido e falei da noite e dos planos A e B. Ele pareceu animado e indicou o endereço onde eu e Cartago poderíamos apanhá-lo mais tarde. Depois me lavei e saí de casa em seguida.

O endereço indicado por Etrusco parecia um prédio abandonado. Apertamos a campainha e, passados alguns segundos, ouvimos um zumbido, depois um estalo, depois o portão abriu sozinho. O interior do prédio lembrava um desses pátios onde são deixados carros imprestáveis ou apreendidos pelos bancos. Um muro alto e imundo demarcava o fim do terreno ao fundo e à esquerda, mas, à direita, havia uma parede também imunda. O chão estava coberto de papéis e folhas e recendia a uma sujeira acumulada por não sei quantos anos. Imersos na sombra, caminhamos rente à parede até um retângulo de luz que, na verdade, era uma porta que dava para uma escada. Etrusco surgiu no último degrau e nós o seguimos até o interior de uma suja cozinha. Da cozinha passamos para uma sala onde, sentada num sofá, havia uma garota bastante magra. Ela estava descalça e trajava um vestido largo, velho e feio; o que me dava uma idéia muito precisa de seu corpo. Ela fumava-falava bastante e o azul dos seus olhos irradiava uma promiscuidade cintilante.

Disse para Etrusco o nome da chácara onde iríamos e ele afirmou que a garota nos acompanharia. No carro tive vergonha de falar dos planos A e B e segui em silêncio. Quando a avenida acabou e virou estrada, afundamos nas trevas e, à medida que acelerava o veículo e mirava as placas de sinalização, crescia um medo e uma excitação parecidos com que eu havia sentido ao conhecer a garota – ora risonha, ora entorpecida – que ia no banco de trás. Às vezes eu olhava pela janela e percebia que, no extremo horizonte, as sombras esmaeciam ou eram recortadas por silhuetas de árvores e morros ainda mais escuros. Entrei com o carro no posto de gasolina onde Etrusco trabalhava e que, devido a uma incrível coincidência, ficava bem na frente da chácara, bastava atravessar a pista.

Após estacionar o veículo debaixo de uma árvore onde cresciam algumas flores (pétalas brancas e roxas e amarelas), caminhamos – sob uma luz branca e fantasmagórica – por um posto habitado apenas por carrocerias de caminhões e esqueletos de carros e bombas de combustível (algumas imprestáveis; muito forte o cheiro de ferrugem e gasolina) e gatos e cães. Quando a luz acabou, perto do acostamento, quase caímos barranco abaixo (a menina de vestido precisou apoiar-se em Cartago). Na estrada, os carros passavam muito velozes e muito próximos e, enquanto atravessamos a pista correndo, respirei o forte cheiro que me ganhava o rosto – era o cheiro de mato, terra e asfalto, um odor bem mais ávido do que o provara ao anoitecer, enquanto caminhava pela Praça da Catedral. Ainda olhei para o horizonte, vi as estrelas gordas, depois as luzes da cidade aos meus pés, e pensei que talvez não existam dias alegres: talvez seja possível apenas falar em dias bonitos.

Um comentário:

Paulo Bono disse...

passei por aqui, cara.