sábado, 22 de setembro de 2007

i want you

Com o dinheiro que recebemos após a morte da avó compramos um computador novo. O outro já contava com mais de dez anos e servia apenas para escrever: pesquisar na rede, ouvir uma música, assistir a um vídeo – tudo isso era impossível.

O computador novo – que não seria apenas meu, como o velho, mas de toda a família – ficaria no quarto antes ocupado pela avó. No processo de limpeza, doamos a cama a um asilo e pintamos as paredes de branco (lembro-me das tardes de sol e do cheiro de tinta e do esforço em trazer aquele cômodo de volta à realidade dos vivos, e quando penso nisso, hoje, acredito que a morte – ou a sua presença – cria lugares dentro do quais é possível encontrar abrigo e depois, quando esses lugares desaparecem ou tornam-se ordinários, o que vem é algo como uma nostalgia da morte).

Com o computador novo, a minha primeira resolução foi baixar, da rede, discos que julgava importantes. Em apenas um mês, gravei mais de dez discos, e os que mais me agradaram foram Highway 61 e Blonde on Blonde. Também descobri as rádios que transmitiam via internet e, quando não escutava Bob Dylan, sintonizava em estações de lugares como Ohio, Novo México, Califórnia. Gostava, sobretudo, quando a voz do locutor interrompia as canções ou lia algum anúncio para a população local. Nessas horas tinha idéias desconexas: era como encontrar um elo físico com as telas de Hopper e as andanças de Sal Paradise e as miúdas (pois lia Faulkner-Chandler-Kerouac-Carver em traduções para o português de Portugal) à espera dos forasteiros e, à margem das estradas, criando torvelinhos de poeira vermelha e despenteando árvores e pessoas, o vento do deserto. Sabia que à noite esse vento perverso soprava Sunset Boulevard acima, e, para um rapazote afobado como eu, tudo se resumia em encontrar uma boa foda.

No entanto, por mais que sintonizasse rádios do Texas ou ouvisse Dylan cantando i want you, nenhuma menina surgiu naquelas semanas. Quando me cansava do computador, saía para dar uma volta pela cidade. Num desses passeios descobri as ruas arborizadas e desertas perto do hospital onde a avó tinha morrido. O que mais gostava, nessas ruas, era o silêncio, a completa ausência de carros e de gente.

Foi apenas no começo de dezembro que descobri o quanto estava atordoado. Creio que começou quando, ao passar o ano em revista, percebi que eu tinha sido um completo fracasso: ainda estava sem emprego e, mais do que isso, tinha tido um desempenho sofrível em todos os concursos prestados. Como se isso não bastasse, gastara um tempo monstruoso lendo e escrevendo e descobrir isso, naqueles primeiros dias de dezembro, fez com que viesse à tona uma profunda repugnância por mim mesmo. Assim assim, mantive a rotina dos últimos meses, mas com uma diferença: agora, talvez devido ao vício num estranho refrigerante feito de guaraná e maçã, tinha problemas urinários e ia dormir cada vez mais tarde.
Aliás, o plano para se livrar do mal-estar era simples: esperar a segunda quinzena do mês, época na qual o comércio fica aberto durante a noite. Julgava que uma série de passeios noturnos (e no final do mês as festas em família) acalmaria o meu espírito. Até me lembro da primeira dessas caminhadas, no dia 16 ou 17 de dezembro. Peguei a rua da Praça dos Gatos e caminhei, sem desvios, até o Calçadão da Rua do General. Lembro-me que no caminho vi uma garota muito bonita: pele clara, cabelos à altura do pescoço, seios como pequenas laranjas, um corpo magro e o ar espiritual que imaginava nas meninas que deviam ouvir as mesmas músicas que eu. Mas ela me dirigiu uma olhar assustado e virou uma esquina. Logo depois cheguei à Rua do General e tomei um desvio para chegar até a Praça do Teatro através da Rua Duque de Caxias: quarteirões tomados por prostitutas e viciados e lojas que vendiam velas e quadros ridículos e inscrições para sepulturas. Na Praça do Teatro, ao passar diante do chafariz, senti o ar mais úmido e tangível e mais uma vez (agora já no rumo do cinema da Rua São Sebastião, onde é possível tomar cerveja junto ao balcão de mármore, e mais além, rumo às luzes que piscavam no prédio da Associação Comercial, e depois rumo à parte residencial do centro, repleta de ruas escuras e silenciosas e arborizadas, com prédios do tamanho de torres em ambos os lados da calçada) acreditei que, cedo ou tarde, encontraria o vento do deserto e o perfume dos jasmineiros.

6 comentários:

Paulo Bono disse...

velho Mississipe,
é agonizante imaginar os livros numa daquelas estantes de metal vagabundo. ao contrário de ler todo esse material aqui. sou fã pacas do "i want you" e de suas inigualáveis descrições.
abração

Anônimo disse...

Mississipi, não é fácil chamar-lhe assim, sabe? mas também não é fácil mergulhar nas suas memórias que sempre me interpelam, viagem ao coração da noite, da cidade, de quem no texto diz eu. Tudo parece tão próximo e tão inalcançável, equilbrismo de impossibilidades...

Duda Bandit disse...

ual... um Fante turbinado. eu nem sou digno de comentar seu blog, chapa.

mississipi disse...

Soledade

Pode me chamar pelo meu nome. Mississipi é apenas um apelido bobo que inventei para mim mesmo. Não é um pseudônimo.

mississipi disse...

Duda

É bom tê-lo aqui... mas fante turbinado? Eu caminho em câmera lenta.

mississipi disse...

Paulo

Pois é, preciso trocar a estante. Vivo dizendo que um dia vou comprar uma chic e bonita. Mas cadê o dinheiro? Valeu pela visita.