sábado, 22 de dezembro de 2007

quase ternura

Poderia falar da dureza do meu coração, mas, como é época de festas, falo da ternura que existe nele e que sobe à tona perante animais indefesos, raparigas que almoçam ou vão sozinhas ao cinema, e até comerciantes às portas da falência. Estes últimos parecem estar em todos os lugares: apenas em meu bairro, nos arredores da praça do teatro, há três lojas de roupas que – não sei se por estupidez ou necessidade – continuam com as suas atividades. O primeiro estabelecimento tem um nome tão estranho e pouco comercial que ainda hoje não consegui decorar: é algo como Calopicista ou Capilocista, embora nenhuma dessas palavras conste no dicionário ao qual costumo recorrer. O referido comércio abriu as suas portas há dois anos e nunca vi um cliente lá dentro. Há uma vitrine e os manequins que a habitam usam roupas que ficariam bem naqueles que pretendem viajar até o litoral. Para além dos manequins, há uma escrivaninha de repartição pública e, atrás dessa escrivaninha, uma mulher costuma dedicar os seus dias à prática do crochê. Em outras tardes, uma mulher mais jovem perambula por entre as roupas expostas com uma criança no colo. Ademais, todo o quarteirão em que fica a loja é melancólico. Ao lado, existe um asilo e, durante o crepúsculo, é comum ver dezenas de velhos respirando a fresca do entardecer afundados nas suas cadeiras de rodas. Numa das esquinas fica uma sorveteria que, talvez por um motivo de economia, só acende as suas luzes no momento em que as sombras da tarde assumem a densidade das trevas noturnas. Do outro lado da rua fica a igreja, diante da qual um pipoqueiro tem uma relação esquizofrênica com as pombas, ora alimentado-as com milho, ora recebendo-as com pedradas.
A segunda loja nem sequer tem nome e se presta ao comércio de roupas usadas. A tática usada pela dona do estabelecimento, para atrair clientes, está mais próxima da mendicância do que das práticas comerciais. Ela espera passar diante da loja uma pessoa e a aborda e, suplicante, diz que, apesar de as roupas serem velhas, são de boa qualidade e não aceita negativas como respostas, de modo que o eleito não escapa sem ser rude ou sem, ao menos, conhecer a loja. Por sua vez, o terceiro estabelecimento pretende ser um Calopicista-Capilocista com mais classe, cuja elegância já pode ser lida na fachada: Sursum Corda. Acredito que o emprego do latim seja um provável vestígio dos conhecimentos adquiridos durantes os anos em que a proprietária da loja freqüentou cursos pré-vestibulares, período no qual fomos colegas de classe. Este passado em comum não deixa de ser uma relação de parentesco, o que torna ainda mais aflitiva, ante os meus olhos, a queda do Sursum Corda. Não que tenhamos sido amigos. Ela nunca esteve mais próxima de mim do que uma dessas estrelas que, em noites de inverno, irradiam um fulgor frio e esverdeado. Uma vez deixada no passado, às vezes acontecia de eu me lembrar com encanto e imprecisão dos seus longos e ondulados cabelos castanhos, a pele mais morena do que pálida, modos que se pretendiam aristocráticos ao andar, falar, talvez até ao se entregar aos homens – e ao vê-la após anos, mais do que o enervante reencontro com uma beleza que deveria permanecer nos mausoléus da memória, percebo que tal beleza permaneceu apenas para esmorecer aos poucos, e, ainda mais do que isso, percebo que sou reconhecido por esse encanto crepuscular e muitas vezes, ao passar diante da loja, sinto-me como um personagem de Dostoiévski que está exilado na Alemanha ou França. Ele passeia por uma cidade e observa o desespero de uma russa linda, nobre, e, no entanto, falida. A jovem percebe que está diante de um russo, nota que ele também sofre dos nervos, que não tem consigo resistir às vigarices dos alemães ou franceses, e quase se joga aos pés do homem. Paizinho, me ajuda, paizinho, e o homem, guiado pelo sonambulismo de quem se desloca entre dois delírios apenas diz Coração ao Alto, minha menina, Coração ao Alto, não posso dispor de nem sequer uma moeda. Assim segue caminho, retomando a lucidez alguns metros adiante, ou melhor, retomando uma lucidez que se situa entre o desespero, a impotência e o escárnio. Olha para trás. A mulher desapareceu, mas, diante de uma outra loja, um velho corcunda, vestido de vermelho, dança e faz caretas com o rosto na tentativa de atrair clientes. Eles estão tendo o que merecem, vocifera alguém com um senso de justiça mais próximo do divino. O russo concorda e, tentando rir, inicia um solilóquio que vai desencadear mais febre e delírio. Sim, eles estão tendo o que merecem.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

balões de pensamentos

Durante anos pensei que o meu gosto por perambular pela cidade viera de filmes como A Doce Vida, A Noite, O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, ou até Depois de Horas – histórias de sujeitos fadados à errância e à contemplação. Mas a verdade é que, mentindo para mim mesmo, fingia ignorar que as caminhadas pela cidade haviam tido início bem antes de eu assistir aos filmes citados. Contava onze ou doze anos quando comecei a voltar andando da escola. Destes primeiros passeios, lembro-me do aroma de biscoitos de polvilho que se erguia acima dos telhados de um fábrica de bolachas. Alguns quarteirões adiante – na mesma rua, a última construção antes do rio – funcionava um bar que exalava um nauseante cheiro de frango cozinhado na gordura pobre. Neste bar, dentro da obscuridade que se dissolvia numa claridade vespertina e poeirenta, homens bebiam e jogavam bilhar.

Não mudei o caminho até os anos do colegial, quando, após um assalto ocorrido nas imediações da fábrica de cerveja, o pai me aconselhou a voltar pelas ruas do centro. Não sei se a luz também envelhece – talvez as reminiscências estejam influenciadas pela memória de uma tarde em junho, um desses dias menos frios do inverno, quando o céu permanece sem nuvens e a luminosidade que desce não agride o rosto – mas lembro de caminhar por ruas muito claras nas primeiras vezes que regressei da escola pelo centro. No último ano do colegial eu e um amigo íamos até a Praça do Teatro, sentávamos num banco e lá permanecíamos por horas, rindo dos homens que víamos passar. Numa tarde este meu amigo tinha dinheiro e resolvemos gastá-lo em cerveja. Foram poucas garrafas, mas a minha inexperiência de então causou uma respeitável vertigem, e na hora de volta para casa só conseguia manter o equilíbrio se andasse em linha reta, muito depressa, e nunca parando. Uma façanha impossível de ser realizada no tumulto das ruas da cidade velha.

No primeiro dia de aulas no cursinho, ao descobrir que só sairia da escola após as sete da noite – e com vergonha de pedir que o pai viesse me buscar -, fiquei tão inseguro que por pouco não entrei em desespero. Uma garota bonita (robusta além da conta, mas bonita) notou a minha apreensão e me ensinou – a mim, que estava tão viciado nas caminhadas que desconhecia qualquer outro meio de ir do Ponto A ao Ponto B – que ônibus deveria pegar. Hoje percebo que ela tinha por mim um encantamento maternal, e um mínimo de habilidade com raparigas poderia transformar esse enlevo em tensão e depois triunfo sexual. Por fim o meu sangue aristocrático falou mais alto e, como um lorde passeia pelas floridas alameadas do seu castelo após caçar faisões, resolvi desbravar as ruas da cidade velha. Logo passei a acreditar que, quanto mais tarde voltava para casa, mais incríveis e singulares eram as minhas aventuras.

Este é o prelúdio da história dos passeios pela cidade. Quando pensava nisso, apontava como causadores dos meus anseios a inquietação juvenil aliada à influência de filmes italianos dos anos 50 e 60. Como disse no começo, a causa não é esta, e só fui perceber o meu engano quando, meses atrás, reencontrei uma caixa velha gibis – quase todos do Homem-Aranha – comprados durante a infância. Nestas aventuras, o que mais me fascinava (ainda fascina) era observar a solitária e insólita rotina daquele herói que vivia num miserável apartamento na Rua Chelsea. Vilões como o Escorpião e o Doutor Octopus eram temíveis, e, quando apareciam, só podiam ser derrotados após um grandioso embate - no entanto, as minhas aventuras prediletas eram aquelas que mostravam o aracnídeo pulando de telhado em telhado durante toda a madrugada; em todos os quadrinhos os balões de pensamentos (uma técnica narrativa que não vejo mais) revelavam as angústias e as confusões do herói, sendo que, entre uma ponderação e outra, ora o Homem-Aranha (no alto de um prédio) observava o frenesi de Nova York, ora enfrentava batedores de carteira.
Hoje as aventuras já não seguem este padrão. A política de tolerância zero praticamente erradicou os batedores de carteiras das ruas de Nova York (e junto com estes pequenos marginais, ficaram abolidos as ruas sujas, a luz néon brilhando na fachada de hotéis ou restaurantes chineses, o nevoiro que tomava conta dos becos) e o Homem-Aranha já não é um solitário: está casado e agora luta na companhia de outros heróis (e todos, good guys e bad guys, o chamam pelo nome: não é mais maldito aracnídeo, é Peter), livrando o planeta de ameças mais aterradoras que o aquecimento global. Ao pensar nisso, a melancolia que experimento não é diferente da que sinto quando percebo que andar por aí já não é tão divertido. Envelhecer é triste, mas ao menos oferece o conforto de ser uma tristeza necessária, mas qual a necessidade de lançar um herói nas garras de um ocaso durante o qual ele deixa de ser um herói? Quantos Césares fui (Na alma, e com alguma verdade; / Na imaginação, e com alguma justiça; / Na inteligência, e com alguma razão) , diz aquele poema de Álvaro de Campos, e talvez só seja possível subir à altura dos césares andando solitário por ruas manchadas de néon – quando os inimigos não são mais do que batedores de carteiras e com um levíssimo (passível de desgarrar-se a qualquer instante, perdendo-se nas distâncias celestiais) balão de pensamento pairando acima de nossas enfadonhas existências.

sábado, 8 de dezembro de 2007

o cheiro do napalm pela manhã

Talvez aquele ano não tenha sido o pior de todos. Talvez tenha sido apenas o ano da derrota ou, antes, o ano em que vivi segundo os padrões de uma vida impossível: li muito, escrevi mais ainda, e no resto do tempo vagava pela cidade, entre a insônia da carne e o sonambulismo do espírito. Por isso não me esqueço das garotas que conheci nesses meses. Eu tinha o corpo aberto para qualquer uma delas, e talvez estivesse disposto a pagar qualquer preço por um amor, ou ao menos por sua sombra, que não daria em nada. Depois vieram os meses da regeneração, da vergonha também. Como foi possível viver daquele jeito? Como foi possível passar tantas manhãs e tardes sem estudar? Como foi possível ter o espírito marcado pela promiscuidade e escapar com a carne incólume? E em meio a isso, em meio ao desprezo pelas excentricidades de outrora, colhi o amor ou ao menos a sua sombra. Foi brando, como se o próprio presente fosse visto através das névoas de uma futura saudade, como se toda a cidade (todos os prédios, e as árvores, e as luzes - tudo isso, menos a carne) tivesse se tornado incorpórea, como se eu habitasse o corpo de um morto e perdurasse no crepúsculo por mais alguns minutos. E então também isso passou e tudo se assentou assim em meu espírito: um ano ruim, um ano bom, e o ano presente, embora o agora também fosse cercado por fronteiras incertas, vaporosas. Foi assim que, quinta-feira, aproveitei a noite para dar um passeio pela cidade. Quando a testa ficou úmida de suor - e quando o vento gelado da noite tocou esse suor e trouxe uma sensação de frescor - foi como se eu movesse dentro dos limites daquele ano que ficou marcasdo como ruim, o pior de todos, mas agora me sentia alegre e queria percorrer todas as velhas esquinas e entrar em todos os velhos lugares. Até me lembrei de Bill Kilgore: o tenente-coronel de Apocalipse Now!, aquele que usava chapéu de cowboy e que, ao observar os seus soldados surfando nas ondas de uma praia devastada, aspira o ar da manhã e, com o seu sotaque texano, diz adorar o cheiro do napalm pela manhã. Tem um cheiro de vitória.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

a amiga americana

Em O Amigo Americano, Tom Ripley vive em Hamburgo como um negociante de artes. Na verdade, Ripley é um falsário entre falsários: além de vender as obras assinadas por um pintor que finge estar morto, ele próprio assumiu o nome-rosto-exílio de um homem cuja identidade foi roubada e que nunca poderá voltar para casa (o que há de errado com um cowboy em Hamburgo? – indaga Ripley, trajado como se vivesse nos ermos do Texas ou Missouri, e a pergunta dá a medida de seu deslocamento e desespero). É na condição de negociante de artes que ele conhece Jonathan Zimmerman: este é um homem honesto, um antigo restaurador, hoje emoldurador – e também um sujeito que sofre de uma incomum doença no sangue, e por conta disso talvez esteja fadado a morte. Quando apresentado a Tom Ripley, Jonathan recusa-se a apertar a sua mão. Com um tom de desprezo na voz, diz eu já ouvi falar de você. Apenas por isso, em retaliação a essa demonstração de asco, Ripley decide arruinar a existência de Jonathan Zimmermam. Ao ser questionado pelo próprio Jonathan sobre as suas motivações, ele relembra o que se passou quando foram apresentados e afirma é um motivo bom o bastante, não?

O filme eu vi há algumas semanas, mas esta frase – é um motivo bom o bastante, não? – foi lembrada por mim ontem. Eu escutava Dean Martin e pensava na época em que ainda não escutava Dean Martin; a época na qual pensava que Martin tinha sido apenas um ator cujo melhor papel fora o do bêbado no faroeste Onde Começa O Inferno (Rio Bravo). Foi há anos, quando ainda estudava Direito. Uma colega tinha uma irmã que vivia nos Estados Unidos; uma cidade bem ao norte, na fronteira com o Canadá, e uma vez por mês ela mandava fotos da neve e às vezes das flores que cresciam na neve. Esta menina que vivia na fronteira com o Canadá tinha um nome estrangeiro, também isso me atraiu. Naqueles anos ainda impúberes eu realmente acreditava que teria mais sorte com um rapariga de nome Isabelle, ao passo que um abismo intrasponível me separava das isabelas ou isabéis. Depois, e não me lembro por que falávamos sobre isso, a minha colega disse que a sua irmã de nome estrangeiro gostava de ouvir Dean Martin. Por isso comecei a gostar dela – porque ela ouvia Dean Martin – e se alguém me perguntasse sobre os meus motivos eu bem que poderia parafrasear Tom Ripley: é um motivo bom o bastante, não?


Meses depois a rapariga de nome estrangeiro voltou para o sul e a conheci. Não só o nariz, também a sua boca era fina e pequena e, no entanto, docemente sanguínea. A pele era clara, de uma palidez igualemente forasteira, enquanto os cabelos ondulados mal passavam da altura do pescoço. Aliás, devo dizer que, debaixo do sol, o corpo dessa menina sofria metamorfoses fulgurantes: o tom castanho (e petrificado) dos olhos assumia uma liquidez cor de mel; o rosto, apesar de continuar claro, afogueava-se e a boca vermelha e singela chegava a se intumescer, quase a desabrochar; e os cabelos ganhavam um brilho avermelhado. Com tudo isso, os meus motivos, que já eram bons o suficiente, tornaram-se incontestáveis. Todavia, não foi das mais vitoriosas a relação que tive com ela. Descobri que o abismo que me separa da isabelas também me separa das isabelles e demais miúdas de palidez e nome estrangeiros. Está certo, trocamos algumas palavras, até risos, e durante uma tarde de terça-feira fomos ao cinema. A despeito de não ser muito, também não é pouco. E não é por despeito que digo que, nas semanas que sucederam o seu retorno, ela viveu o ápice de sua beleza que florescera no norte e que agora vinha ao sul. A doce e branda claridade de abril-maio não tardou em ir embora e, no outono seguinte, quando retornou, já não colheu qualquer metamorfose. O que me leva a pensar que talvez seja ainda mais breve o esplendor das isabelles que ouvem Dean Martin e que se transformam sob a luz e que às vezes fotografam as flores que crescem em meio à neve.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

passeios

Pode ser que a falta de fôlego (tão logo alcanço a Praça do Teatro, sinto ardentes e irrespiráveis o ar e a luz) não seja sinal de velhice. Talvez a cidade já não me seduza como antes. Muitas vezes sinto que todas as esquinas e caminhos foram desbravados, de modo que não é possível ir adiante. Seria o mesmo que tentar prorrogar o período das grandes descobertas e navegações até os séculos XIX e XX. Não, a rota para as Índias já foi traçada, a América já foi encontrada – todas as caravelas lançaram-se ao mar, naufragaram as que não alcançaram o seu destino, e o Encoberto permanece encoberto.

Disse tudo isso a um amigo, semanas atrás, e ele me respondeu que é sempre possível encontrar um novo atalho para fronteiras bárbaras. Sursum corda!

Concordei, mas dias depois – era tarde de sábado, fui até o quintal e olhei para o sol a fim de me decidir, e o que percebi foi o vagoroso, quase impercetível fluir das horas escaldantes, o cheiro da terra queimada, e os ventos pesados e espessos que mal agitavam as folhas das bananeiras – usei o carro para ir até o centro comprar um livro.

Enquanto dirigia, lembrei-me dos dias que vieram após a morte da avó. Quando eu passava as manhãs – junto da mãe – rexemendo nos armários, decidindo o que seria guardado e que iria para o lixo. Um dos achados mais insólitos foi um verde olho de vidro que apareceu no fundo de uma gaveta. Também encontrei inúmeros dentes dentro de uma caixa de sabonete e, ao lado, uma dentadura de pelo menos 30 anos. Depois, deparei-me com uma enferrujada câmera fotográfica; o revólver que pertencera ao avô na década de 50; porcelana e cristal em excelente estado; caixas (de lata) de biscoitos. À medida que revirava tudo isso, sentia-me sujo, como se tocasse objetos dignos de repugnância. No entanto, isso não era o pior. O pior era levar os armários e demais mobílias (comidas por cupins) até o quintal e, com uma marreta, reduzi-las a pequenos pedaços de madeira, depois enfiar tudo numa carriola e jogar na caçamba que fora alugada. Após um dia de trabalho assim – que terminava pouco depois das cinco horas – era impossível permanecer em casa. Eu saía e ia muito além das praças do Teatro e da Catedral. Andava até os limites da cidade velha. Até os quarteirões onde os prédios acabavam e, em meio a poeira e a lama dos terrenos baldios, começavam novamente residências.

Do dia da morte da avó (início de outubro) até as festas em dezembro quase não choveu. Se me recordo bem, o estio terminou no entardecer da véspera de natal. Eu e o pai tínhamos saído para alimentar os animais da praça quando um aguaceiro nos apanhou. Escondemo-nos debaixo de uma marquise. A chuva não chegava a ser forte, mas os pingos eram grossos, e, vez ou outra, um sopro de vento soltava um frêmito das copas das árvores. O ocaso não foi mais do que uma penumbra cinza pousando sobre os telhados, como se as nuvens estivessem cada vez mais baixas. As luzes nos postes acenderam-se e, por um momento, foi como se esse céu plúmbeo estivesse cravejado de gordas estrelas douradas. A essa altura, a chuva caía fraca, embora correntes de vento ainda brandissem os galhos das árvores, mas agora sem qualquer frêmito. Eu não sabia se considerava tudo aquilo ou bonito ou triste ou apenas conveniente para a data e para o meu espírito – sabia apenas que era inútil, que o entardecer ficaria em mim como um vislumbre de beleza ou ternura e que às vezes eu sentiria a necessidade de resgatá-lo, mas apenas isso; nenhuma esperança e nenhum renascimento. De qualquer modo, a ternura perdurava quando saímos da proteção da marquise e caminhamos até o jardim coberto por pétalas amarelas e iluminado por luzes que ardiam (um fulgor avermelhado, perto de se extinguir) em globos que lembravam lanternas japoneses. Tal o cenário: o céu cinza, nas ruas um brilho dourado, dentro da praça chamas escarlates, o chão coberto por pétalas de flores e bosta de pássaros que tinham assumido a textura de um musgo escorregadio, os bancos de madeira em ruínas, e debaixo de um deles um cachorro também perto da extinção, que pouco ligou para a comida deixada por mim e pelo pai. No caminho de volta, ao passarmos diante do bar onde os homens se reúnem para jogar cartas e dominó, fomos saudados por um sujeito que entrou em seu carro e saiu em disparada. A ternura começava a se abrandar, uma nova sombra de asco avizinhava-se, e não apenas isso – exaustão também, cansaço de existir na cidade, a falta de ânimo para sair nos sábados seguintes e procurar garotas e ficar embriagado como aquele homem que, saudando a todos, saía alucinado.
Hoje quase já não saio para passear, mas às vezes, durante uma dessas minhas raras deambulações, até alcanço ruas que me são desconhecidas. Foi assim na última sexta, quando, aproveitando que nos dias de calor a noite demora a pousar, decidir ir ao sul de uma avenida larga e habitada por prédios de no máximo dois andares – um arremedo do que imagino ser a Hollywood Boulevard. Dobrando esquinas angulosas, fui me afastando cada vez mais da avenida. Quando dei por mim, perambulava por uma rua invadida pelo mato, sendo obrigado a desviar de galos. Ao atingir o ponto mais ao sul possível, comecei a subir. Tomei uma rua de início paralela à avenida, mas que com esta convergiria ao oeste, na sua numeração mais alta. A intersecção, percebi com uma antecedência de duzentos metros, seria ao pé de um auspicioso edifício erguido há poucas semanas. À medida que me aproximava, mais ermos ficavam os quarteirões (durante todo o trajeto não houve nem sequer uma silhueta de mulher que eu pudesse perseguir). Por fim cheguei a uma praça que me pareceu vazia, onde, no lugar que deveria pertencer ao coreto ou ao chafariz ou à imagem do soldado desconhecido, havia a estátua de uma carruagem conduzida por um anjo – o que me pareceu ser uma evocação dos Portões de Brandemburgo. Olhando com mais atenção, vi um bando de velhos que, na companhia do seus cães ou netos, descansavam nos bancos (brancos como mármore), outros exercitavam-se sob a diáfana (até meridiana) luz do entardecer. Não é possível ir adiante, pensei comigo mesmo, e iniciei o caminho de volta. Enquanto caminhava ao largo da praça e do condomínio, até pensei em Kaváfis, nos bárbaros que nunca haverão de chegar (pois aqui já estão) e na espera que não existe e que talvez nunca tenha existido. O que resta é morrer sob o sol, como se nunca tivesse havido noite ou brumas que se ergueram na distância e roeram os ossos dos encoberto e outros infantes ou deuses. Estes, disse a mim mesmo num dos meus delírios de fuga, jazem em outras fronteiras; além desses falsos portões e além dessa luz límpida, duradoura, inócua.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Três Poetas

1. T.S. Eliot foi o primeiro poeta que tentei ler a sério, aos dezenove anos, e ainda hoje mantenho muitas das minhas primeiras impressões: o fascínio por uma erudição que não se fecha em si mesma – que vai ao encontro da emoção (ou fuga da emoção, para adequar o texto a uma idéia cunhada pelo próprio Eliot) e de um pensamento sólido e coeso, dando origem a uma linguagem apurada, capaz de criar algumas das mais belas imagens que já encontrei na poesia. Apenas puxando pela memória, evoco as gaivotas que, na aurora onde se entrecruzam dois sonhos, adejam sobre a praia; os ossos esquecidos sob o Ganges; a luz dos archotes queimando rostos marcados pelo estoicismo e desolação; a ardente rosa do oblívio e da piedade; os pensamentos que fluem cruéis como a torrente de um rio na natureza de uma tarde de verão; o céu crepuscular estendido no horizonte como um corpo morto; o cadáver do alto e belo Flebas sendo roído pelas correntezas submarinas; o Rei Pescador; a chegada das chuvas em Abril revolvendo a terra semeada por raízes e flores agônicas; o cão que desenterra os mortos; o vento que uiva contra as portas; o estrondo do trovão sobre as montanhas; o lixo acumulado no leito do rio ao fim de um piquenique; a Palavra inexpressa. Essas imagens tiveram um impacto tão grande em mim que eu, ao tentar os meus primeiros poemas, busquei emulá-las, e vez ou outra até conseguia escrever versos dignos de um prodígio. Ofereço como exemplo os versos abaixo, recordados pelo amigo Nuno Dempster no comentário da postagem anterior:

Já quatro vezes me tinham apontado uma arma.
A última ameaça fora a mais terrível de todas,
fez-me sonhar com um mar furioso. Era noite
e os nossos rostos eram moldados pela brisa
que nos meses quentes antecepe as tempestades.
Do meu lado, num miramar, o pai
e seu último irmão vivo;
este agonizava, e com o câncer e a tosse
veio o desejo de ser batizado naquela praia.

"Vejam", disse o tio, fitando o mar e as rochas,
"Tudo isto é Deus, sim, tudo isto é Deus,
não preciso que um sacerdote cinja a minha fronte".

Sobre a sequíssima areia caminhou rumo à praia.
A água do mar mostrou-se apenas salgada,
corroeu a sua carne dorida, exasperou o espírito
sedento de palavras, signficados, símbolos.
Aflito e cobiçando ser pó, sentou-se nas dunas:
o seu derradeiro verso era os vermes em sua face
iluminada pelo sol que já irrompe fustigante.

"Lázaro morreu uma segunda vez."

2. Seria odioso defender o meu encanto por Manuel Bandeira com a alegação de que se trata de um conterrâneo. Todavia, sou lembrado disso após ler qualquer poema seu – logo percebo que os versos foram escritos por um homem que nasceu sob o mesmo sol que, todas as tardes, vejo estiolado no céu poente. Um sujeito que vivia em cidades parecidas com a minha; e as miúdas cantadas por ele (seja Jacqueline que morreu menina e que morta era mais bonita do que os anjos, ou as três moças do Sabonete Araxá, ou as mulheres puras o bastante para saciar a vontade dos homens impuros, ou a imensamente bela e até redentora mulher que é apresentada em seu Madrigal Melancólico) eram feitas da mesma luz – a mesma luz fugaz e precária – que afogueia os rostos das meninas que vejo andar pelas ruas. Mas escrever apenas isso não basta. Também admiro a riqueza de um pensamento que sempre interpretei marcado por inversões ou ambigüidades. Versos a princípio introspectivos se mostravam fatalistas. Em contrapartida, havia poemas que, a despeito de um começo sombrio, desaguavam numa terna e humilde reflexão; e nunca percebi tanta alegria conspurcada de tristeza e tanta melancolia sufocada por euforia inconseqüente, alucinada. Acredito que o eterno, em Bandeira, nunca foi uma obsessão: essa sanha de revelar-se superior, de destilar teorias sobre a imbecilidade alheia. Em Bandeira, a eternidade decorre de um passeio pela praça de uma cidade poeirenta – e, se ele diz a vida é agitação feroz e sem finalidade, diz com uma raiva que não é raiva e com um desprezo que em momento algum é desprezo. Apenas escreve como quem dá de ombros, e também foi assim – como quem dá de ombros - que a sua poesia aproximou-se de mim, tornou-se íntima, essencial para a noção de identidade que julgo trazer no sangue. Pois, se para mim o mississipi nunca existiria sem Faulkner, tampouco existiria sem Manuel Bandeira.
3. Embora nascido em Alexandria, Konstantinos Kaváfis é tido como o melhor poeta grego no século XX. Motivos para isso não faltam. Em Kaváfis, o que mais me impressiona é o diálogo que ele estabelece entre o eterno e a sua condição de homem contemporâneo. Aliás, acredito que a excelência de seus versos pode ser encerrada numa fórmula simples e fácil apenas na aparência: o encontro entre a concisão (seus poemas eram breves) e uma linguagem cristalina, tão solar quanto atemporal. O principal tema de Kaváfis é o passado: seja o passado do corpo (a interminável evocação dos amores hedônicos da mocidade), seja o passado da sua herança cultural – ele que trazia no sangue o ocaso de uma luz ora bizantina, ora helênica, e que muitas vezes se fundiam num único e crepuscular ardor. Dos poemas escritos por Kaváfis, sempre me intrigaram os que receberam os seguintes títulos: Dias de 1903, Dias de 1901, Dias de 1896 – como se o que ficasse fosse apenas a memória de dias e, em muitos casos, nem isso. Ainda sou jovem, mas quando olho para trás não posso deixar de constatar a verdade desses versos e reminiscências. Dos dias de 97 não consigo evocar mais do que os primeiros passeios noturnos pelas ruas da cidade velha, rostos e corpos de garotas (rostos e corpos que permanecem, em mim, como belos corpos de mortos que nunca nunca envelheceram, / com lágrimas sepultos em mausoléus brilhantes, / jasmim nos pés, cabeça circundada de rosas, e como isso dói) e o sol da tarde entrando no segundo andar do Pato. Dos dias de 98, as memórias não são muito diferentes. De 99 sobrevivem vestígios de um amor quase puro que senti, isso em dezembro, e que perfume forte tiveram as flores naquele verão. Assim fluem as lembranças: em 2002 um novo encontro com o amor e mais, a certeza de triunfar sobre ele; em 2004 e 2005, os meus anos mais mundanos, cheiro de bebida, corpos de mulheres cobertos por um suor que se misturava com a doçura da água de colônia, o reflexo das luzes no asfalto após uma noite de chuva, a incrível raiva e frustração de um desejo que nunca arrefecia, o olor de samambaias na noite em que a avó morreu, e depois, em 2006, nova possibilidade de triunfar sobre o amor, uma última convulsão de fúria sensual, a luz amarela que descia do alto dos postes, as muitas noites de chuva, a realidade assumindo uma dimensão mais etérea do que nunca. De tudo isso me lembro: é pouco, e percebo que esquecerei ainda mais nos próximos anos – a não ser que eu me depare com a madeleine que, milagrosa, irá me restituir todas as sensações e minutos do tempo evanescente, apesar de eu saber desde já: a devolução de uma realidade em fuga não impede que essa continue fugindo.

sábado, 17 de novembro de 2007

últimos dias de aulas

Estávamos no segundo andar do Pato e formávamos um semi-círculo ao redor da única mesa de bilhar em condições de uso (a outra mesa fora coberta por um plástico grosso e imundo). Dos cantos do cômodo, exalando um cheiro gelado, pedaços de gesso, tijolos, sacos de cal e cimento pela metade. O sol entrava oblíquo, após roçar – também inclinado – a cruz da catedral e o ponto mais alto das árvores; um sol fino, ardente e silencioso de começo de verão. Mas pode ser que o silêncio não habitasse aquela luz que era, a um só tempo, pura e impura: o silêncio parecia transcendê-la para, no instante seguinte, revelar-se aquém dela. Para não pagar mais do que uma ficha, tínhamos usado o truque de bloquear as entradas de todas as caçapas. As bolas não caíam. Apenas deslizavam, silentes e sem qualquer atrito, sobre o feltro da mesa, entrando na luz e saindo da luz como se isso não significasse nada (o que, de fato, não significava). A graça do jogo, agora sabíamos, era matar as bolas e escutá-las dentro da mesa;aquele ruído de mármore correndo sobre a madeira e depois um baque surdo e em seguida o silêncio. Ninguém tinha vontade de falar porque era o último dia de aulas e tínhamos a consciência de que fracassaríamos na prova do domingo. Tal insucesso fora auguriado por todos há pelos seis meses, mas o que ninguém suspeitara é que o tempo jogado fora assumiria a concretude de uma carcaça, e mais – por vezes o cadáver desse ano desperdiçado, diante de nós, surgia como o cadáver do pai, ou, em casos extremos, aparecia como o nosso próprio corpo morto. Por isso não jogamos até depois do anoitecer. Encerramos as atividades quando havia sol e caminhamos juntos por alguns quarteirões. Depois o grupo se dispersou. Mas ainda estávamos unidos quando cruzamos a Praça da Catedral. Quando a luz – que ainda descia oblíqua e ansiosa – roçava a cúpula da igreja e os verdes ramos das árvores.
No outro ano, aconteceu a vitória. Saímos da escola após a primeira troca de professores, ainda antes das duas da tarde. Não me lembro do nome do rapaz – não conversávamos muito, mas nas últimas semanas, com a progressiva escassez de alunos, tínhamos nos aproximado – que nos levou de carro até o mais elegante centro de compras da cidade. Também não recordo o que procurávamos lá. Imagino que eram garotas, e é certo que as observamos, pelos corredores ou diante das vitrines das lojas. Depois, ao percebermos que qualquer abordagem seria ridícula, seguimos para uma lanchonete nas imediações da Avenida Nove de Julho. Era divertido bancar o vagabundo durante a tarde de um dia útil; um papel que eu já desempenhara antes, mas nunca com tantos recursos, dispondo de um chauffeur que me levaria onde quer que desejasse ir. Pedimos sanduíches, sucos e comemos na área externa da lanchonete. Não havia ninguém por perto. O sol estava brando e cristalino, e a direção para a qual soprava o vento afastava o cheiro de gordura e trazia um quase imperceptível perfume de árvores e flores no final da primavera. Após o lanche, o chauffeur sem nome disse que precisava ir embora. Enquanto nos despedíamos (estávamos todos na esquina), meu pai passou de carro e me viu. Estavam com ele minha mãe e a irmã. Creio que retornavam de alguma consulta médica e, ao me avistarem, gritaram e acenaram, não sei se bravos ou apenas surpreendidos. Tive medo, mas o veículo dobrou uma esquina e não retornou. Caminhamos rumo aos quarteirões da cidade velha, onde era possível jogar bilhar. Com o Pato às portas da falência, decidimos ir a um estabelecimento mais ao sul – este de reputação duvidosa. No trajeto vimos um homem e um iguana. O lagarto, como se fosse um pássaro monstruoso, repousava no ombro do seu dono, mas em dado momento saltou ao solo e, sempre muito veloz, correu até a pequena árvore que ficava diante da loja, escalando-a. Contemplamos a cena com asco, embora também tivéssemos o espírito calmo, donos de uma tranqüilidade de que observa um evento apenas porque este é curioso. No salão de bilhar não encontramos nada que fosse duvidoso ou ambíguo: vimos uma fileira de mesas e o sol, que entrava pela porta descida até a metade, pousando sobre algumas, o que ofuscava e feria os olhos. Nos cantos, homens feios conversavam com mulheres feias. Para minha vergonha, pois tinha a fama de ser o jogador mais hábil, perdi várias partidas na seqüência. Não podia terminar o ano daquela forma, humilhado, e, assim como Shane deixa para trás os planos de ser um bom homem apenas para não ser surrado diante do garoto que o admira, tentei sorrir com o canto da boca e anuncei que venceria todos os jogos restantes.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

sobre a impossibilidade de estar alegre

Muitas vezes chego a desprezar o elogio que se faz do visceral. Como se o homem pudesse ser apenas redimido pelo que possui de animalesco.
Não que esses apetites não rebentem em mim: rebentam com tanta força – e são calados a um custo tão alto – que há em dias em que não espero mais do que uma alegria calma. Essa alegria sem qualquer aspereza, que às vezes se confunde com um desejo de evasão, um suave anseio de fuga. Como se fosse possível não estar morto e também não estar vivo. Estar, em suma, o mais próximo possível do não-existir, ou melhor, do não-sentir. Todavia, assim como o animalesco e o inumano (uma vez passada a fúria) despertam para o humano, o que não é morte é vida, e não é possível estar em outro lugar além de mim mesmo. Aliás, pode ser que essa calma alegria não seja mais do que uma tristeza pacífica. Consegui-la já é conseguir muito.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

novembro

O ano termina e ameaça cobrar a sua conta. Escrevi pouco, mas ainda assim foi mais do que no ano passado, quando não escrevi nada – 2006, o início do meu período mais estóico. Ainda hoje vivo dias de abnegação, mas começo a fraquejar. Acredito que essa estadia em montevidéu é o maior sinal dessa exaustão. No entanto, o pouco tempo que passo aqui é aflitivo pois não permite mais do que anotações esparsas, desconexas. Lembro-me de um sujeito que dizia que meu nome era Joe. Ele simpatizava comigo e essa empatia pode ter me poupado de conhecer a sua natureza mais violenta, mas ela existia. Por meses, acompanhei a trajetória desse sujeito pela cidade: até mim chegaram relatos tenebrosos, em duas ou três noites lhe paguei cerveja e aguardente, conheci a garota de rosto destruído que ele explorava e também o vi acompanhado de raparigas bonitas. Esta amizade da qual me envergonho merece um conto, uma reflexão mais apurada, mas agora não há tempo para isso. E há Nágila, aquela miúda de dente lascado que estudou comigo quando eu tinha dezessete anos. Ela me parecia ser uma das mais cândidas da classe. Talvez por isso tenha ficado em meu sangue, ou pode ser pelo fato de que, numa conversa com Cartago, elegemos o seu corpo nu (do qual tínhamos apenas uma idéia sonhadora-imprecisa-trêmula) como o mais bonito de todos. Após ingressar na faculdade, nunca mais a vi, mas há meses sonhei com ela – e é um sonho que não me sai da cabeça. Eu estou na capital e caminho pelos corredores de um prédio antigo, as paredes cobertas de mofo esverdeado. Alguém me acompanha, mas é irrelevante saber quem é, também eu desconheço. Abro uma porta e estou diante da antiga colega de classe: Nágila aos vinte e oito anos de idade, mais alta, o corpo severo e implacável. Agora ela é uma uma prostituta cujo trabalho é surrar e humilhar homens. Também sobre isso, sobre esse impossível e onírico reencontro com Nágila, gostaria de refletir . E há mais. Se vasculho a memória encontro a história do estrangeiro que chega a um lugar onde nunca esteve em busca da menina que, por alguns meses, trabalhou em sua casa como au pair. Ele vem após a morte do filho e o reencontro com a miúda (e a bizarra história de amor que decorre desse encontro) é outra idéia que preciso trabalhar com calma. Aliás, não é apenas o amor e o sexo em suas manifestações mais sórdidas-incomuns que ocupam os meus pensamentos. Há o projeto de uma história que, é quase certo, exigirá mais páginas do que um conto: a quase documental narração de um começo de namoro, uma novela que acalento há anos e cuja epígrafe (e tom) descobri no filme que vi dias atrás – "Amor À Tarde", de Eric Rohmer. No filme conhecemos Frederic, um homem bem casado que, nas horas de folga, vagueia por Paris enquanto tem, diante de si, um desfile das mais lindas garotas. Ele quer todas, mas não se lamenta (pelo contrário, até agradece) por saber que nunca mais verá cada uma dessas meninas que cruzam o seu caminho, e nem sequer fica intimidado quando vê uma delas nos braços de um namorado: ele sabe o destino que aguarda o amor, sabe como as relações afetivas envelhecem e se estabilizam, e em dado momento devaneia (a tal epígrafe): sonho com um mundo feito apenas de primeiros amores e amores eternos – e é sobre isso que gostaria de escrever, sobre essa dilacerante luta entre o efêmero e o que permanece, a luta contra o corpo, contra a fossilização do amor. A todas essas histórias pretendo retornar depois do dia 25 de novembro, que é a data da última prova, e no ano que vem espero estar liberto, pois, como disse, alcancei o limite do estoicismo. No entanto, enquanto essa liberdade mentirosa não vem sigo com as anotações esparsas, leituras de livros curtos (para não me comprometer por semanas e atrapalhar os estudos), canções de amor dos anos 50 ou 60, embora às vezes eu sinta esse doloroso anseio pelo sublime. Aconteceu hoje quando, cansado das domésticas canções de amor, ouvi Bach após meses, anos. Foi triste – e belo – porque tive pensamentos e almejei alturas inalcançáveis.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

educação cinematográfica

Não sei se as musas existem. Eu, pelo menos, nunca tive uma. Há uma garota de rosto e corpo bonitos. Diante desta rapariga é possível pintar aquarelas, compor canções, odes, elegias, sonatas, romances; mas a verdade é que não sei o que isso significa. Sei que existe a beleza, e mais: sei que existe uma idéia – que também é um anseio – do que é a beleza. Quando um cérebro ou espírito criativo (ou que assim se julga) se vê perante tal espetáculo, é natural o sobressalto, o espanto, a ânsia de capturar e depois expulsar para fora de si tudo o que foi suscitado por tamanho esplendor. Mas essa beleza pode ser tanto encontrada no rosto de uma menina como também numa cadeira ou vaso sanitário. Basta ter o sopro.

Quanto a mim, nunca tive paciência para contemplar cadeiras e vasos sanitários. Tenho os meus gatos (muito charmosos), reconheço que filhotinhos de cachorro são um dos poucos acertos do divino, adoro algumas esquinas da cidade velha e – vá lá – gosto de árvores frondosas, tardes de chuva, poentes lentos macios incendiados. Mas nada disso me impediu de ter um cérebro ou espírito dos mais sanguíneos. A maior fonte de beleza ainda são as garotas; sejam as meninas da porta vizinha, sejam as ungidas por poeira de arco-íris, habitantes de um olimpo para o qual não nasci, e que, por esse motivo mesquinho, interessam-me menos.

É óbvio que há exceções. Um exemplo é Eva Green. Ao ver Os Sonhadores passei noites insones, quase sonâmbulo. Os cabelos castanhos; a pele insuportavelmente tangível e, no entanto, inalcançável; a placidez e a inocência (tão evanescente) do rosto; a boca vermelha, que às vezes se abre num esgar que é uma mistura de escárnio e lascívia e ternura – tudo isso me assombrou por um bom tempo.

A Doutora Cameron, da série House, foi outra que esteve perto de minhas entranhas, e não tanto por ser bonita, mas por sua mórbida e dolorosa indulgência em relação aos tipos mais desajustados (pois o meu gosto para mulheres, embora resvale o óbvio, ostenta matizes de morbidez e perversão). Marie Laforet, em O Sol Por Testemunha (e apenas em O Sol Por Testemunha) fluiu em meu sangue por um par de noites, façanha também conseguida por Catherine Spaak em Aquele Que Sabe Viver.

No entanto, a primeira garota olímpica a chamar a minha atenção foi Martina Hingis. Corria janeiro de 1999 e eu tentava repousar após dois anos de cursos pré-vestibulares. Na primeira quinzena do mês, fui ao mar, mas choveu todos os dias e quase não desfrutei da viagem. No final do dia, quando a chuva parava (e o ar ficava impregnado de cheiros confusos: tábuas podres, quase mofadas; a doçura da terra e das árvores encharcadas; a maresia salgada, fina, vagamente nostálgica, pois eu não descia ao mar há mais de cinco anos), eu saía com o pai para jogar sinuca num bar quase em ruínas, que ficava em frente ao cemitério da cidade, ou passava numa banca de jornais que apenas vendia livros imprestáveis. Por conta de tudo isso, já tinha lido o bastante (para as férias) quando, de volta à cidade, resolvi gastar a quinzena final de janeiro da maneira mais ociosa e solitária possível. No segundo ou terceiro dia de inércia, descobri, num canal da tevê paga, o Aberto da Austrália de Tênis. Logo em seguida descobri Hingis. Mais jovem do que eu. Um corpo delicado e pequeno (quase impúbere) para uma tenista; e os olhos verdes; e a pele muito branca e o olhar suplicante na direção da mãe (então a sua treinadora) após cada ponto perdido. Ela já era a número um do mundo. Para assistir à final, recusei um convite para sair, e depois, ao vê-la desfilando com o troféu – com um vestido vermelho incandescente, o rosto também afogueado, o fulgor dos olhos verdes, a pele rosada docemente marcada pelo sol nos ombros e no pescoço – apaixonei-me. Como se ela fosse uma menina da vizinhança, ou como se eu tivesse reais condições de ascender aos cumes da glória e da fama apenas para tê-la.

Seguiu o ano. Fui estudar cinema. Naquela época e naquele lugar de grunges tardios – quando todos os rapazolas sonhavam em foder Kim Deal – eu pensava, secretamente, na bela e eterna Martina. Passei a acompanhar sua carreira. Vi, com desespero, a trágica final em Rolland Garros, quando perdeu (um jogo ganho) de Steffi Graf, brigou com os juízes e, humilhada, saiu vaiada pelo público. Então veio a derrocada, a escassez de títulos, a ascenção das irmãs Williams, Lindsay Davenport, Jennifer Capriati e outras jogadores nada singelas. Após contusões e brigas com a mãe, Hingis interrompeu a carreira. Surgiram rumores de casos amorosos, um mais lamentável que o outro, e depois, quando as garotas bonitas voltaram a dominar o circuito, eu já tinha o coração morto para as beldades do olimpo.

Foi com esse ceticismo que vi o seu retorno às quadras no começo de 2006. Acompanhei as primeiras partidas após o regresso com a dúbia sensação de que aquela era e não era a Martina de outrora. Os olhos cintilavam como antes; o rosto ainda permanecia afogueado; e descobri no corpo, eu que me acostumara à singeleza de anos atrás, a glória ou pelo menos a insinuação de uma carnalidade perto de explodir. As vitórias não vieram, mas a verdade é que dela já não esperava qualquer triunfo, apenas um retorno digno e calmo: sem conquistas e também sem humilhações.

Mas agora, enquanto relembro, não sei se um regresso sem humilhações garante um fim digno e calmo. Pode ser que um vencedor, pelo simples fato de deixar de ganhar, torne-se um perdedor. Nesse caso, a angústia, o desgosto e a raiva podem ser ainda maiores. Hingis retornara e, com resultados apenas razoáveis, longe de realizar façanhas, conseguiu ficar entre as 20 melhores. No entanto, após cada eliminação na primeira rodada – ou derrota para jogadora nunca antes vista, ou desempenho tido como excelente por ter alcançando apenas as quartas-de-final – a minha memória cinematográfica foi aproximando Martina de outro olimpo, este em ruínas e habitado por perdedores (alguns charmosos, outros crônicos), prodígios nunca consumados e deuses caídos: figuras exploradas à exaustão pelo cinema norte-americano dos anos 40 e 50. Até pensei em cowboys que, após o esplendor na condição de assassinos ou ladrões de trens, definham em algum rancho nos ermos de Utah ou Missouri, em paz e à sombra da lenda criada. Melhor assim, pensava eu, do que a culpa – e depois o brutal retorno à violência – de William Munny; ou o périplo de Ethan Edwards pelas imensidões do Monument Valley, ele que, após a derrota do sul, recusa-se a voltar para casa e perde décadas buscando a sobrinha capturada pelos índios. Um homem que, após assassinar cada um destes índios, atira nos olhos dos cadáveres para impedir que a alma saia e suba.
Acontece que, conforme aprendi nestes mesmos filmes, estar distante (o tal rancho nos confins de Utah ou Missouri) não impede um último confronto com a existência que o perdedor (ou prodígio falso ou deus caído) tenta abandonar ou até manter. Pode-se dizer que esse olimpo subterrâneo é apenas temporário, daí a sua natureza purgatorial; apenas um lugar para se estar antes da morte, esquecimento, aceitação da derrota. E, lendo os jornais no decorrer da última semana, deparei-me com a notícia da aposentadoria de Martina Hingis, anunciada em razão de um exame de doping – realizado durante o último torneio de Wimbledon – ter revelado traços de cocaína. Li também que ela alega inocência e é possível que uma contra-prova contrarie o primeiro resultado. Ainda assim, não consigo imaginar desfecho mais melancólico para o seu precoce brilhantismo, e por conta disso também eu, no dia em que li a notícia, fiquei triste e pensativo. Sem saber o que virá agora, abanonei a comparação com os comboys desditosos e me fixei em outro filme sobre o fracasso: A Marca da Maldade (A Touch of Evil). Lembrei-me da frenética e corrupta cidade na fronteira com o México; da sensação de calor reverberando nas sombras noturnas; dos rostos suados; da revelação de que o personagem de Orson Welles (o mais poderoso policial da cidade) fizera a sua carreira adulterando e manipulando provas; e depois relembrei a sua queda, desespero e por fim a derrota final no outro lado da fronteira – uma cidade fantasmagórica, vazia, varrida por fortes ventos que traziam em si um cheiro do mar que nunca era visto, e ao longe (mas cada vez mais próximo) o som de uma pianola que tangia sem cessar uma áspera melodia, e o reencontro com Dietrich, a melancolia da banal conversa que vem a seguir (banalidade traída apenas quando a cartomante, com o rosto implacável, mira o homem gordo que tem diante de si e diz algo como: eu disse que você não deveria comer tantos doces), e depois a morte e corpo tombando sobre o mar que enfim é mostrado, tudo aos sons da pianola. Foi nesse cenário que enquadrei Hingis, ou melhor, foi esse cenário o pano de fundo dos meus pensamentos: eu melancólico, também um pouco derrotado, e a sensação de coração morto para o olimpo e as suas quases musas. No mais, canção, no mais­ – assim Camões encerrava, sabiamente, cantos de sua velhice.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

falso diário de viagem

1. O mais longe que estive foi ao oeste, e por poucas horas. Primeiro visitei uma igreja devastada por ventanias de terra. Depois fui conhecer o comércio local. Uma caminhada por ruas lamacentas e apinhadas de bancas que vendiam artesanatos, manufaturados ou produtos eletrônicos falsificados. No entanto, o homem que assumira a função de guia nos alertou que era perda de tempo negociar com os camponeses, e ordenou que o condutor do ônibus nos levasse a um mall erguido apenas para abastecer os viajantes. Essa viagem durou pouco mais de duas horas. Às margens da estrada, observei campos cobertos por uma vegetação densa e anônima – apenas árvores e bananeiras aqui e ali. Então nos deparamos com uma construção erguida no meio desse princípio de floresta: um prédio enorme, pesado, quadrado, também sujo por sucessivas ventanias de terra, e, como descobrimos depois, abandonado. O estacionamento ao redor, que poderia abrigar centenas de veículos, não apresentava nem sequer um carro. Nos limites do terreno, um posto policial invadido pelo mato. A solução foi cruzar a fronteira de volta, mas a verdade é que em nenhum momento eu me descobri um estrangeiro. Talvez pelo fato de terem sido em português as poucas palavras trocadas com os nativos.

2. Se a condição do estrangeiro é o encontro com uma língua que não é a materna, então me descobri fora daqui apenas uma vez, e em meu país. Não me lembro qual estado eu cruzava. A viagem iniciara-se logo cedo e já atravessava a tarde quando o ônibus parou num desses restaurantes à beira da estrada. Como naquela manhã em que estive ao oeste, não havia sol; apenas uma claridade escura, densa e sufocante. O restaurante – uma construção baixa, vidraças sujas de terra – estava cercado por morros altos e áridos, de um marrom escarlate. Ao entrar, encontrei o estabelecimento imerso na penumbra e na monotonia. Junto a uma das janelas, um grupo de homens comia. Pairava um cheiro de carne crua e velha, como se eu acabasse de entrar num açougue às vésperas da falência, idéia que pode ter sido sugerida pelas paredes de encardidos azulejos brancos. Pedi uma soda. Alguns ocupantes do ônibus decidiram almoçar, outros beberam café ou aguardente. Eu já saía pela porta do restaurante quando o rapaz atrás do balcão perguntou se eu vinha do sul. Ao sul do norte e ao norte do sul, pensei em responder, mas essa impossibilidade geográfica me soou exagerada, fruto de uma concepção ainda medieval do espaço. Apenas concordei que vinha de um ponto ao sul, ao que o rapazote emendou percebi pela sua palavras.
Saí do restaurante e, lá fora, observando a paisagem, a princípio fiquei orgulhoso da minha maneira de pronunciar as vogais e as consoantes, mas logo me vi encapsulado dentro de uma estranha nudez, talvez pudor. Espantava-me saber que os sons que saíam da minha boca fossem uma extensão física do meu corpo e da minha origem – algo tão evidente, tão irrevolgamente meu como uma cicatriz ou marca de nascença. Até me lembrei de um grupo de espanhóis com quem, dias atrás, dividira uma embarcação. Não conversamos: eles riram entre os deles, eu ri entre os meus, mas em nenhum momento tirei os olhos da espanhola mais jovem; do seu corpo tão igual ao das miúdas que estudavam comigo mas também distinto de qualquer corpo encontrado ou tido por mim. Um corpo diferente porque pensa em outro idioma, porque batizado por outra língua. E se falo assim, a minha carne é assim, o meu sangue é assim. E é como se fosse diferente o sangue e a carne das pessoas que falam diferente; pois os seus corpos parecem ter sido curtidos sob uma luz diversa, não uma uma luz mais bela, mais plena, mais forte, apenas uma luz diversa e distante e (para mim) impossível; e muitas vezes percebo esse impulso animal de querer misturar o meu sangue a um outro apenas porque não é o meu, embora eu também perceba a possibilidade de odiar um homem apenas porque ele nasceu sob outra luz. Não há unidade, não há nem sequer um eixo – podia ter pensado enquanto olhava na direção dos montes encarnados, os olhos feridos pela escura claridade.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Conto: Prelúdio de Um Ano Bom

Nos dois anos durante os quais fui estiagiário do fórum, as únicas tardes bonitas foram as de chuva, sobretudo no primeiro ano, quando ainda estava na secretaria. A mesa ocupada por mim era a pior de todas – ficava bem na frente do balcão dos advogados, de modo que eu era obrigado a atender qualquer um que aparecesse, função que eu exercia com timidez. O consolo é que, nas tardes de pouco movimento, bastava girar sobre o eixo da cadeira para me deparar com uma janela que se estendia por quase toda a parede, e esta parede era um mirante para a praça que ficava em frente ao fórum, um lugar simples, com apenas algumas árvores, um chafariz em ruínas, um parque para crianças igualmente desolado, e arbustos floridos com pétalas pequenas das mais diversas cores. Nas tardes de chuva, quando o som calmo e abafado da água deslizava sobre as vidraças – e quando a luz vespertina escoava ao longe, acima das árvores, na distância do céu de nuvens brancas – o tédio do trabalho parecia remido pela visão daquilo que, às vezes, me parecia ser um descomunal jardim de inverno. E muitas vezes nem era preciso contemplar: bastava ouvir o frêmito da água, bastava respirar o cheiro de terra encharcada que, não raro, conseguia esgueirar-se repartição adentro.

No segundo ano, durante a época de chuvas, eu já estava no gabinete. Uma sala pequena. Além de mim, contava com apenas dois servidores e, à medida que entardecia, não era raro eu ficar sozinho durante longos minutos. O gabinete dava para as salas dos juízes e também para a sala de audiências. Os juízes nunca apareciam, mas era comum, no final do expediente, escutar uma mulher trabalhando na sala de audiências. Ela vinha da secretaria com uma pilha de processos, sentava-se diante do computador e começava as preparações para o dia seguinte. Era uma mulher bonita, magra, com pouco mais de trinta anos, de cabelos escuros, pele clara, olhos muito negros e fundos, vestida com aquela sobriedade vulgar que imperava entre as senhoras que trabalhavam no prédio – enfim, uma mulher cuja carne exalava um perfume doce e cujo hálito, até o final do dia, traía vestígios do almoço feito às pressas em algum restaurante nas imediações do fórum. Éramos corteses e, eventualmente, até simpáticos um com o outro, mas não posso dizer que a sua presença, na sala ao lado, suavizava as horas finais do expediente, pelo contrário; em muitas ocasiões era como ter a carne e o sangue e a órbita dos olhos esmagados pela peso de uma avidez demoníaca, quase insuportável. O consolo, tal como já fora nos tempos da secretaria, eram as tardes de chuva; o inegostável frêmito; a umidade que aos poucos desprendia-se das paredes e até alterava a percepção das horas. Então eu caminhava até a janela e observava a paisagem, que não era mais a da praça que, sob as sombras de muitos crepúsculos, me parecera inundada, submersa na água que caía em torrentes: agora contemplava um estacionamento, a imobilidade da sua rotina, e, ao longe, a luz em fuga, de uma opacidade que às vezes quase assumia um brilho dourado.

Numa tarde de sexta, não quis voltar para casa. No caminho até o carro, cruzei a praça. Chovera até minutos atrás e agora, encrespado ao anoitecer, descia um resto de sol. As árvores altas – curvadas sobre a abandono do chafariz e do parque infantil cujos brinquedos recendiam a ferrugem – transmitiam a idéia de um abóbada também arruinada, mas dentro da qual havia paz e silêncio.

Liguei o carro e tomei a direção do Wall Mart que ficava a poucos minutos do fórum. Passei pela entrada principal e, ao notar a enorme quantidade de veículos no estacionamento, tomei um desvio – contornando o parque de diversões que fora erguido nos limites do terreno; descendo um atalho que corria paralelo ao fundos de um hotel chamando Sleep In; passando ao largo de um terreno baldio que se estendia até a rodovia que levava para a capital (era o começo da noite e eu podia ver, na estrada, as luzes vermelhas nas traseiras dos veículos que iam embora e, no meio do terreno baldio, um quadrado de luzes amarelas assinalava um heliporto que talvez nunca tenha sido usado); por fim chegando a uma parte pouco conhecida do estacionamento, com muitas vagas vazias.

A doçura de antes dissipara-se, e a hipocondria que a provocara também estava fraca, embora nada fosse capaz de aniquilá-la por completo e, pior, quase tudo a instigava, quase tudo a alimentava. Os ventos finos e cortantes, por exemplo, tinham a função de trazer à tona a exaustão física, um mal estar na carne do rosto. Do cansaço surgia a idéia de abandono irredimível e inesgotável, um quase anseio de morrer ou de, pelo menos, não pertencer a uma realidade física; não ser um corpo que necessita de cuidados e que levanta apetites o tempo todo; um corpo que morre porque tem que morrer mas que, antes, precisa ser mantido saudável, limpo, fértil, puro, desejável, belo; um corpo que, não raras vezes, constitui um fardo pesado demais. Não mais do que isso. Um fardo.

Tinha estacionado o carro na parte mais baixa do conglomerado de lojas, em frente a um lugar que vendia produtos para animais e cuja fachada exibia, num néon berrante (e esta luz refletia-se nas poças que tinham se formado durante as chuvas da tarde e que ainda agora tremeluziam, devido à garoa que voltara a cair), a imagem de um cão risonho. Enquanto caminhava até o mall, às vezes olhava para a rodovia e mais além, para os campos que mesclavam-se às trevas noturnas. Esta solidão tão mentirosa – pois era preciso um grande esforço para ignorar os rugidos que vinham do monumental dinossauro do parque de diversões, e o rumor dos carros, e aquele murmúrio que era a soma das centenas de vozes e corpos humanos que, como uma torrente, moviam-se nos corredores acima de mim – davam um ar mais solene, se é que isso pode ser dito a respeito de qualquer emoção humana, à tristeza e ao cansaço. Às vezes era possível distinguir; ou melhor, às vezes era possível imaginar, no ar entrecortado de ruídos, os acordes de alguma canção bonita, ou a voz e o riso de uma garota de quem um dia gostamos muito, ou até versos que, embora nunca declamados, ganham sonoridade e corpo na memória. Às vezes Kávafis, ou Eliot, ou Bandeira, ou Eugênio de Andrade, ou Rexroth.

A idéia de solidão aumentou enquanto subia as escadas rolantes e olhava, através de uma opaca vidraça, dezenas de bicicletas e esteiras ergométricas, todas vazias, dispostas no interior de uma academia ainda inacabada. Quando alcancei os corredores, o cansaço desapareceu, e, ao notar raparigas bonitas aqui e ali, voltou a animação. Algumas caminhavam solitárias; traziam sacolas de lojas caras e paravam diante das vitrines, com uma expressão ora vaga, ora introspectiva, arrumavam o cabelo que lhes caía pelo rosto, e então seguiam com um passo vagaroso, quase indolente, quase sonâmbulo. Sabia que, aos olhos dessas meninas, eu era não passava de um arremedo de bárbaro – trajava calça e camisa que, apesar de boas para o trabalho no fórum, nem de longe eram sinais de prosperidade. E em meu rosto devia haver (talvez ainda haja) qualquer expressão de desvario, uma excitação nervosa ou uma timidez que resultavam do constante sentimento de inadequação. Portanto sempre achei sedutora essa autonomia, essa solidão quase aristocrática de algumas mulheres diante das vitrines das lojas mais elegantes. Eu as via com seus olhos glaucos, e cabelos loiros ou de um castanho que sob o sol fica vermelho ou cor de mel, e pele nívea, e nariz fino. Todas serão erva, dizia o meu instinto mais terrível, mas vinha outro instinto, este mais calhorda, e falava da necessidade de se deitar sobre a erva mais bonita, a relva dos píncaros, onde a luz parece imorredoura e onde adejam borboletas azuis. E se depois quiserem arrancar a cabeça de Julien Sorel, tanto melhor.

Planejara ir à livraria e depois assistir a algum filme. Na livraria vi o conhecido rosto de uma garota que fora minha colega nos tempos em que pretendi estudar cinema. Eu a chamei e começamos a conversar. Há anos não a via e, além de não saber o que esperar, ainda existia em mim aquela sensação de ter sido um traidor da causa artística e não apenas isso: fora eu o único a abandonar aquela família onde todos almejavam aprender sobre Murnau e Resnais e Wenders; o único a abandonar aquela universidade encravada no interior de um bosque de eucaliptos; o campus da, para mim, sempre melancólica faculdade de cinema – um lugar que, a cada palavra trocada com a antiga colega, ergueu-se da memória: lembrei-me dos crepúsculos, dos dolorosos ocasos que pareciam pertencer a outro continente, sobretudo na hora em que o gelado vento alcançava a névoa que subia do lago, toldando o céu e as últimas horas do dia. Então era até possível acreditar que, nos alojamentos, vivesse uma linda miúda de nome Dawn ou Aube, e, durante as noites de frio intenso, era quase real a sensação de caminhar pelos corredores de um castelo perdido na Floresta Negra e que antes abrigara Rilke e as suas elegias. Mas não há névoa, não há bosque de eucaliptos que cesse a algazarra das cigarras em novembro e dezembro, e quando isso acontecia – quando a luz descia límpida e, mais límpida ainda, deslizava sobre as águas do açude – despertávamos para o nosso país e muitas vezes era como despertar para a própria mortalidade, seja da carne, seja do espírito. O lago rebrilhava e, no entanto, era como mirar uma adiada sepultura.

Ela tinha os olhos negros. Os cabelos, também escuros, eram revoltos, crespos como os de uma judia. O corpo, pequeno e esquálido, transmitia uma idéia de doença, de desespero íntimo. Por mais que olhasse, não podia acreditar – nem sequer por um segundo – que a sua pele recendesse a sol; que os seus instintos, libertos, fossem a vitória da carnalidade; como se o corpo há muito tivesse desistido de ser um corpo.

Mas podia ser que tais impressões fossem resultado das recordações que eu tinha dela. Lembrava-me, por exemplo, de uma noite em que, involuriamente, eu fora espectador de sua tristeza e ruína. Nessa noite, eu tinha ido embora mais cedo da aula para assistir a um importante jogo de futebol. Conseguira carona com Ezequiel, um outro colega de classe, um sujeito que, na universidade, era tão deslocado quanto eu. Justo na hora em que entrávamos no carro ela apareceu, também à procura de uma boléia. E começou a chorar quando o carro estacionou diante do prédio onde vivia. Falava da depressão, de obsessões amorosas, dos medicamentos, de sua completa disfuncionalidade, de não conseguir acordar e comer e estudar e trepar, e então Deus quis salvá-la. Deus começou a falar pela boca de Ezequiel, e – quando ele quer salvar alguém, quando quer que as suas palavras saiam da boca de um dos seus servos – as palavras são excessivas para abrir ou pelo menos anestesiar (pela exaustão) o coração estiolado. O resultado disso é que a conversa durou horas. Deus existe e é misericordioso; Deus ou não existe ou é a implacabilidade da morte e o fracasso de tudo o que é humano; o suicida é o mais orgulhoso dos homens; não há ato que demande mais humildade que pôr fim a própria vida; a fé salva; a crença torna o homem indigno: enfim, estes foram apenas alguns dos antagonismos que pontuaram aquela conversa sem lágrimas. Apenas raiva de um lado, e, do outro, a lógica sagrada e terna.

Apesar de não ter tomado parte do diálogo, a partir daquela noite nos tornamos íntimos. Eu chegava na segunda e ela perguntava como fora o final de semana; eu falava dos lugares a que tinha ido e às vezes até aludia a alguma rapariga e depois pedia conselhos; ela ria das minhas confusões – uma risada bonita, que causava assombro na medida em que parecia alheia àquele esquálido e vulnerável e desesperado amontoado de carne e ossos – e o que dizia não era diferente do que outras meninas me diriam.

Contudo, não demorou e logo o riso dela perdeu aquela aura sublime que o havia consagrado. Agora este mesmo riso (ainda sonoro, ainda bonito) surgia como um esforço, um gesto de mendicância e, após poucas semanas, tudo nela revelou-se exatamente isso: mendicância. Lembro-me de uma noite em que, ao chegar a uma festa, ela me abraçou. Perceber os contornos de seu corpo contra o meu foi agradável: tinha os seios bem salientes sob o tecido da blusa e a rigidez da carne guardava vestígios de uma idade pubescente. No entanto, mais uma vez fora uma mentirosa primeira impressão: notei – à medida que o abraço demorava-se a ponto de se tornar sufocante – que esta rigidez não era nada mais do que um sinal de crispação: o ódio da carne pela própria carne e o asco do corpo pelo próprio corpo. E tudo nela, todas as suas palpitações e tremores pareciam obedecer a um ritmo secreto, como se ela tivesse dois corações. O primeiro igual a todos, impulsionando o sangue por todo o organismo – mas além desse coração parecia haver um outro, pulsando nas sombras do primeiro, e que dava fluxo a uma ânsia cada vez mais alucinada de acabar com tudo. Era este coração secreto que nutria o seu corpo e, se isso acontecia, também era natural concluir que ela fosse dúplice em todos os aspectos. Percebi isso numa tarde em que dormia ao meu lado. Apesar do semblante pacífico e da vulnerabilidade e desmaiada lascívia daquela corpo aberto para mim, havia algo mais, como se uma segunda epiderme recobrisse a primeira, e a mesma impressão tive ao mirar os cabelos, o rosto, a boca, os ombros, os contornos dos seios: tudo parecia germinar a tragédia, toda a carne parecia crispada em virtude de uma condenação prematura e inevitável. Em outras palavras: ela era um corpo, e este corpo cobiçava como qualquer outro, a diferença é que tinha a consciência do fracasso do desejo e de qualquer outro anseio humano. Então como compreender a mendicância? Como compreender que esse corpo continuasse se oferecendo? E como possuir e fecundar e gozar de uma carne que não era mais do que a desolada e fantasmagórica voz da terra calcinada?

No mês seguinte abandonei a universidade, uma decisão tomada no curso de uma madrugada de insônia, enquanto ela dormia ao meu lado. Não é raro a mendicância ter, como paga, a covardia. Foi um modo de conter os meus instintos mais perversos; de escapar das pulsões sádicas que me inspiravam os mergulhos naquela pele dolorosa e viciante; naquele corpo que se abria, que se entregava até o aniquilamento, e que encontrava paz, calma e até disciplina na agonia física; um corpo que, febril, era raiva e que, ao esfriar, era a antecipação da morte, a esterilidade de tudo, a impotência; e madrugada após madrugada a sensação da carne (feminina, sonâmbula) dormindo ao meu lado: a respiração pesada, o hálito quente, doce e mórbido que dela se desprendia; e em mim também a raiva, crescente, a raiva como naquele poema de Dylan Thomas, a raiva contra a luz que se quebra, a raiva por possuir um corpo que, desperto, tudo o que fazia era encolher-se de medo. Não consigo comer, não consigo estudar, não consigo trepar. Era o que ela gostava de dizer, e após um tempo percebi que tinha razão: não trepávamos, não havia entre nós qualquer foda, qualquer coisa que remetesse ao amor ou à sua tentativa, ainda que falhada. O amor não podia ser tamanha carnificina.

Depois disso, Aurora, em duas ou três ocasiões, veio até a minha cidade – a fala desesperada, o corpo mais seco do que nunca, os olhos cadavéricos, o rosto sulcado, os cabelos de judia, mas bastava abraçá-la, bastava ter o corpo dela contra o meu para se assombrar com as possibilidades oferecidas e, logo em seguida, negadas. Tudo era triste, inútil, estéril. Até que um dia ela deixou de vir. Agora, segundo os relatos que me chegavam, o centro de suas obsessões era Ezequiel. Uma relação também raivosa, miserável, falhada, e que veio a deixar um filho abortado. Ao saber disso, o que primeiro me espantou foi existir fertilidade em sua carne. Mas poderia ter sido um milagre. Talvez Deus – que antes fora a voz de Ezequiel – tivesse chegado ao cúmulo de fecundar aquele corpo que expulsava de si qualquer início de vida.

Agora ela vai dar cabo de tudo, pensei comigo mesmo após estas primeiras ponderações, sem saber até que ponto a criança não nascida aumentara a sua tristeza. Ezequiel também tinha a abadonado e, ciente disso, até pensei em voltar para o bosque dos eucaliptos. Considerava – como um casmurro às avessas – que a criança pudesse ser minha e até encontrava evidências que confirmassem tais suspeitas. No entanto, ainda um arremedo de casmurro, toquei os estudos adiante; aprendi as leis numa cidade que nada tinha de Coimbra.

Isso não quer dizer que, nos anos seguintes, eu não tenha retornado. A primeira dessas visitas ocorreu durante um mês de dezembro. Recordo que, naquelas semanas, chovia muito todos os dias. Foi a primeira vez em que, durante a viagem, peguei fortes temporais durante o trajeto. Acostumara-me a olhar pela janela do ônibus e contemplar, até onde a vista alcançava, as plantações de café, cana de açucar, e também os sítios nunca cultivados. Mas naquela viagem o cenário estava mudado. O céu parecia baixo e a vastidão dos caminhos perdia-se numa monotonia manchada de cinza. Quando cheguei à universidade, contudo, veio um resto de sol. Feixes de luz clara desciam por entre os eucaliptos; a luz mais límpida e fulgurante que já havia encontrado; e a mais crepuscular também; morrendo depressa pois o vozerio das cigarras era onipresente e porque o calor começava a se tornar insalubre, com um odor de água morta que subia do lago. Os velhos colegas foram amáveis. Quando a vi e a chamei, houve novo abraço e por um instante foi bom – ela ainda tinha os seios salientes sob o tecido da blusa, a rigidez da carne jovem. Então percebi que a mendicância e a hipocondria daquele corpo haviam morrido para mim e talvez para todos. Cheguei a ter a impressão de que ela e o seu corpo tinham existido apenas para isso, apenas para ter algo não nascido dentro de si e o que vinha agora era a queda solitária. No momento em que o abraço terminou, surgiu em mim algo que era uma mistura de raiva e ternura. Algo que poderia ser a voz da carne; o seu apelo ancestral; o falhado instinto da carne em existir em outra carne.


Agora ela me perguntava que livro eu tinha nas mãos. Respondi que não era nada especial e perguntei o que fazia na cidade. Venho para cá duas vezes por semana, respondeu para acrescentar logo em seguida: os terapeutas daqui são melhores – cobram mais caro. Sem dizer nada, mirei o seu rosto, e notei que já não era apenas a depressão que o sulcava, escavando cada vez mais fundo: a erosão dos anos trazia marcas e sombras, e o curioso é que aquele começo de velhice chegava a atenuar o desespero com um ar de distinção, de sobriedade. Quando vierem os cabelos brancos e a falência total da carne, aí ela será uma velha triste como tantas outras – pensei – mas isso pode demorar. Ela me disse que ainda estudava em eucaliptos, cursava o último ano, e que eu acertara ao fugir daquilo tudo. Quis consolá-la com um pouco de melancolia. Respondi que na maioria das vezes sentia-me solitário, e que naquela noite nem pretendia comprar um livro: apenas matava o tempo antes de ir ao cinema, e seria bom ter a companhia dela. Ela aceitou, mas a verdade é que, durante a exibição do filme, tive os olhos fixos na tela o tempo todo. Não quis beijá-la porque o seu corpo já não me pedia nada. No entanto, inúmeras vezes durante a projeção, lembrei-me das madrugadas em que dormimos lado a lado. Lembrei-me do peso da sua sua respiração; do halo feminino, ora insuportavelmente triste, ora excessivamente lascivo, que se irradiava de sua pele; da carne que se crispava ao menor toque. Ao fim da sessão, abraçamo-nos, e percebi os contornos dos seios, mas a carne já não estava tesa, rígida, e uma última vez o casmurro às avessas que existia em mim revirou velhas suspeitas. Chovia fino enquanto caminhei de volta ao carro. Poças tinham se formado aqui e ali, refletindo o néon que descia das fachadas das lojas, enquanto ao longe a rodovia vazia e escura confundia-se com as trevas do terreno baldio. Segundo relatos, ela afogou-se no açude de eucaliptos algumas semanas depois, no final de fevereiro. Ouvi a notícia com pesar e até espanto, mas isso não impediu aquele ano de ser um dos mais gloriosos.

domingo, 14 de outubro de 2007

possível fragmento (em dezembro)

O ano anterior fora horrível, embora quase salvo pelo mês de dezembro, de muitas caminhadas noturnas e visitas a casas de fliperamas e salões de bilhar. No primeiro desses passeios, saí às ruas apesar da ameaça de chuva – nuvens avermelhadas acima dos telhados e um vento forte e úmido que vergava as palmeiras e erguia um torvelinho de papéis e pétalas de flores. Desde os tempos do Pato, antes de ingressar na faculdade, eu não perambulava pelas ruas da cidade velha durante a noite. E foi bonito ver, nos quarteirões perto do Mercado Municipal, aquelas construções de 1930/40 destruídas pelo abandono e enfeitadas com luzes amarelas, verdes e azuis. Perto da Praça da Catedral o vento era tão forte que as árvores, curvadas, quase tocavam o solo. Continuei caminhando, passei pelas sorveterias e esquinas cheias de gente e logo alcancei aquele trecho mais escuro da Rua Amazonas, antes de ela voltar a se iluminar e desembocar na Praça do Teatro, a mais bonita da cidade durante a época do natal, pois o chafariz fica ligado toda a noite e as copas das árvores são adornadas com gigantescos e fulgurantes frutos de plástico vermelho. Nesse trecho escuro da Rua Amazonas, havia uma casa de fliperamas.

Quando voltei às ruas, os ventos tinham cessado. Agora, da imobilidade das árvores e do céu, descia um ar gorduroso e sufocante. Cruzei a Praça do Teatro e continuei descendo. Quando alcancei os quarteirões mais baixos da cidade, a pestilência do ar já era insuportável: o que perturbava, quase tangível, era mais do que a súbita aspereza da atmosfera, mas a consciência de uma carne insone há madrugadas, curtida pelo sol, arrefecida pelos ventos noturnos e depois fustigada por uma inesperada alteração na densidade do ar. Eu caminhava pelo quarteirão onde, há alguns meses, numa tarde de sábado, vira um bêbado estatelar-se no chão. Lembrei-me de como parecera morto, da poça de sangue que começara a se formar ao redor da cabeça, do grupo de homens que correram para ajudá-lo e de como eu fora obrigado a tomar parte daquilo tudo, erguendo-o junto com os outros homens (eu segurava uma das pernas) e levando-o por um corredor estreito e fétido, o qual terminava numa sala escura, onde um grupo de velhos sem camisa e cheirando a bebida se reunira em torno da tevê. A essa altura, o bêbado tinha começado a recobrar a consciência e sacudia, pesada e debilmente, as pernas. No caminho de volta, enquanto ainda caminhava pelo corredor, observei, no chão poeirento, o rasto de sangue, e pensei com horror na possibilidade daquele sangue ter me tocado na pele, nas roupas. Logo depois topei com uma rapariga de cabelos claros, olhos escuros, trajando uma bermuda puída e uma camiseta apertada que permitia ver, na altura do estômago, pedaços de uma carne lívida e flácida. Ela tinha saído de um dos bares do outro lado da rua e, ao me abordar, perguntou se eu tinha um preservativo para lhe vender. Respondi que não. Ela questionou os outros homens que haviam ajudado o bêbado, seguiram-se risadas.

Em casa quis escrever um poema. Quis que o nojo e o desprezo fossem ternura e depois quis que a ternura fosse o espírito do mundo. Até cheguei a escrever meia dúzia de versos de uma mentirosa indulgência. Poucas semanas foram o bastante para eu deixar de pensar no homem caído, mas a memória da menina perdurou por meses. Ao passar por aqueles sítios, não deixava de olhar para os bares, pastelarias, hotéis antigos transformados em pensões escuras e decrépitas. E, se nem sequer posso dizer que havia desejo e busca, também não posso afirmar a ausência de desejo ou busca. Eu apenas mirava aquelas pessoas e aqueles prédios e pensava em como a vida podia ser tão baixa, em como a carne era capaz de se degradar, e muitas vezes vinha quase uma ânsia de se misturar – o impulso de estar dentro, de entender, de saber, de ao menos provar aquilo que era tão miserável e fértil e talvez inumano; e às vezes, como naquele primeiro passeio noturno em dezembro, eu me demorava de propósito, rondava os quarteirões, procurava um vestígio de beleza, ao menos um sinal de que o nojo e desprezo pudessem ser ternura e ao menos um indício de que a ternura pudesse ser o espírito do mundo. No entanto, tudo o que eu fazia era andar. Era olhar para as luzes ardentes, para a degradação – tudo o que fazia era nunca desejar, nunca buscar, mas também nunca deixar de desejar ou buscar.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

idílio

A morte do corpo, e apenas do corpo, é o tema central (talvez o único tema) de “Homem Comum” (“Everyman”), de Philip Roth. Portanto, nada mais natural que a personagem central não ter um nome, pois a biografia narrada não é a de um homem; é a história de um corpo e a sua degradação, passo a passo, da hérnia operada na infância até os colapsos da velhice. A biografia de um corpo que, como quase todos os outros, é saudável no começo. No entanto ele vai se estragar – agoniza, apodrece e morre porque tem que agonizar, apodrecer e morrer: não importam as dietas seguidas, os tratamentos feitos ao pé da letra, o diligente cuidado durante anos, décadas. Ao cabo de tudo virá a precariedade dos órgãos que começam a falhar, as doenças, as cirurgias, as pontes de safena, os tubos de respiração artificial, as quimioterapias, até que é alterada a percepção do tempo e talvez não seja possível morrer em paz. Talvez a única alegria possível e verdadeira seja a de um corpo saudável, e, no fim, a certeza de ter sido um corpo bom e pleno não é mais do que a amarga e senil evocação de um paraíso distante.

Ao comprar o livro, tinha a idéia de, após a leitura, passá-lo ao pai, para que ele enfim conhecesse a prosa de Roth. Mas, a cada página lida, lembrava-me de suas últimas crises de hipertensão (numa delas ele respirava pesado no banco do passageiro, podia deixar de existir a qualquer momento), de umas sombras surgidas ao redor dos olhos, da corcunda cada vez mais proeminente, da tocante melancolia que tenho percebido aflorar durante algumas risadas. O resultado de tais pensamentos é que, agora, não tenho a menor vontade de lhe passar o livro. Todos morrem e todos sabem que vão morrer, mas saber da morte é diferente de ser a morte. Talvez seja de um sadismo violento colocar o livro na cabeceira da sua cama, mas é possível que ele passe incólume pela leitura, é possível que o medo seja apenas meu, um medo que é um resto de infância e também uma das primeiras antecipações da morte: se existe, no passado, a lembrança de um paraíso, talvez a primeira sensação desse paraíso seja a certeza de que são eternos aqueles que amamos, e a segunda – e a mais permanente sensação – é a cega crença na própria imortalidade.

Aliás, não é de se estranhar que, durante a leitura, eu tenha revirado a memória para resgatar imagens que me provassem a glória de ainda habitar um corpo bom, e o que me assaltou foi a lembrança de umas dessas noites em que a alegria surge de um cenário de aparente monotonia. Foi durante o primeiro ano do namoro. Naqueles meses, nas noites de quarta, eu a levava para as suas aulas de caratê. Enquanto ela treinava, eu aproveitava para caminhar pela vizinhança. Gostava disso porque era uma parte da cidade que não conhecia bem, mas aos poucos surgiram pontos de referência, como a fachada de um supermercado que, sob a luz branca irradiada pelos holofotes do estacionamento, lembrava-me muito uma tela de Hopper. Nessa noite, todavia, não fui muito longe. Começou a chover muito forte e precisei voltar para o carro e lá esperar durante quase uma hora. Às vezes olhava na direção da academia e a via, através da vidraça, durante o incompleto movimento de um golpe, mas logo ela entrava num ponto cego e desaparecia. Depois eu olhava para a cidade, para a quietude da rua deserta sob o aguaceiro. Quando ela aparecia novamente, mais uma vez prestava atenção na incompletude de seus movimentos e ficava alegre porque mais tarde iríamos estar juntos. Então mais uma vez ela saía de meu campo de visão e mais uma vez eu voltava a contemplar os telhados castigados pela chuva, a luz amarela e opaca que descia do alto dos postes, e às vezes ligava o rádio e alternava entre uma estação que tocava sucessos antigos e a narração de um jogo de futebol.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Lá há dias como este

Em dezembro há as tempestades e os caminhos ficam cobertos de pétalas amarelas. Em fevereiro e março, o calor, sem perder a força, começa a agonizar: o ar fica áspero e a luz que declina é crua e antiga, como se não houvesse noite – e nem sequer crepúsculos – há meses, talvez anos. Há chuvas, e, à medida que abril se aproxima, os ventos ganham frescor, retornam os ocasos, o céu cravejado de estrelas gordas, e as manhãs e tardes, apesar do calor ainda estalar nos terrenos baldios, assumem uma claridade pacífica.

Essas condições climáticas perduram durante o inverno, cujo rigor se resume a algumas poucas madrugadas. Então vem agosto e o estio, iniciado há poucas semanas, torna-se cruel. Os ventos quentes retornam e trazem o cheiro de cana e terra queimada. Os jornais informam que a umidade do ar está em níveis críticos, nas escolas deixam de praticar atividades físicas, e suplementos especiais reportam os cuidados que cada um deve tomar. A seca, que nos anos bons dura até setembro, muitas vezes ultrapassa outubro.

Não sei quando comecei a prestar atenção no clima. Talvez durante a leitura de Grande Sertão: Veredas, ao perceber quantas vezes o narrador tenta definir o que é sertão – mais do que um espaço geográfico, um espaço onde existem aquelas vidas e não apenas isso: um lugar onde possa existir a ficção. Após Guimarães Rosa, vieram as leituras de Faulkner, e o território inventado por ele, Yoknapatawpha, no estado do Mississipi, cenário da maioria dos seus livros. Quentin Compson disse:

Lá há dias como este no fim de Agosto, em que o ar fica fino e sôfrego como aqui, com um não sei quê de nostálgico, de triste e familiar. O homem é o somatório de suas experiências climáticas dizia o pai. O homem era o somatório de tudo mais alguma coisa.

Creio que foi a partir daí que passei a situar o que escrevo numa cidade apenas parecida com a minha, mas uma cidade cujas peculiaridades climáticas eu conheço com exatidão e orgulho – uma cidade com cheiro de terra, sob uma luz que ainda zune em meu sangue. Agora vem o árduo e talvez inútil trabalho de povoar esse lugar, de encorpá-lo com memórias e histórias e sombras que não sejam apenas as minhas, embora ainda não tenha o que somar a tais experiências climáticas. Às vezes, como no mês passado, enquanto ia a uma cidade perto da minha, diviso os campos às margens da rodovia. Não há nuvens e a luz, aliada aos ventos poeirentos, chega a ferir os olhos. Percebo um trator trilhando um caminho sobre a terra. Por onde passa ergue-se uma névoa de poeira vermelha e áspera, que logo depois se dissipa. Rio para mim mesmo e murmuro, com alguma frustração, mississipi.

domingo, 7 de outubro de 2007

tarde de sábado - apontamentos

1. No salão de bilhar da Rua Santiago, nunca entendo o que jogam o sujeito atrás do balcão e o seu habitual oponente. Cada um pega um punhado de cartas e, sem nenhum critério aparente, descartam algumas. Quase não conversam.

2. A moça que não sei se é filha ou amante do dono do lugar parece mais feia do que há dois meses. Quando eu e Cartago chegamos, ela comia de um prato de alumínio, olhos atentos na tevê da parede. Não quisemos incomodá-la e escolhemos uma mesa isolada. Após terminar o almoço, ela sumiu por uma das portas que dava para os fundos do bar. Reapareceu minutos depois e pude vê-la melhor. Calçava uma sandália de couro, vestia uma saia puída que mal chegava aos joelhos e uma incomum blusa rendada que parecia ter sido tirada de uma boneca. O rosto, de uma lividez ungida pelo suor, cintilava. Não devolveu os nossos olhares e voltou a sentar-se na cadeira antes ocupada. A essa altura, o jogo de cartas tinha terminado e o seu pai ou amante foi até ela e passou a acariciar a sua fronte, os cabelos negros e gordurosos. Cartago falava da esposa. De um programa de computador que, ao analisar as opções da bolsa de valores, escolhe as ações que devem ser compradas e as que devem ser vendidas. O vento – ou melhor, a aridez do ar está repleta de sol e de terra que sobe das calçadas e desce dos telhados. Lembro a mim mesmo que a avó foi sepultada numa tarde como essa.

3. Passamos em frente a um curso preparatório para o vestibular. É dia de simulado e a calçada estava tomada por raparigas de dezessete e dezoito anos. Cartago afirmou que, há exatos dez anos, estávamos em situação idêntica. Em silêncio, evoquei os dias durante os quais ainda podíamos caminhar pela cidade nas tardes de sexta. O último desses passeios foi em maio do ano passado: eu vivia as primeiras semanas do namoro e tinha o corpo exausto e, no entanto, desperto como nunca antes – uma sensação de quase aniquilamento e quase delírio por ainda estar recebendo o início do amor. Soprava um forte vento enquanto, diante da escola onde havíamos estudado, metade oculto nas sombras, contemplávamos a saída dos alunos.

4. No final da tarde, quando já estávamos de volta ao salão de bilhar, lembrei-me da outra avó, a que ainda não morreu. Não sei o que conduziu o meu pensamento até ela, talvez a visão da fachada de uma clínica geríatrica no outro lado da rua. Sobre avó morta escrevi inúmeras páginas: uma minuciosa narração do colapso que a matou afogada pelo próprio sangue, a descrição da sala onde ocorreu o velório, o sepultamento, os dias que se seguiram, o sol, a dor. Diante do cadáver da avó morta, eu tive a absurda sensação de estar diante de algo que já tinha deixado de existir.
Mas a outra avó, a que ainda não morreu, parece representar uma situação oposta. Ela não reconhece ninguém, a memória deixou de existir, a carne fica mais macilenta a cada dia, basta um vento para abrir feridas nas pernas e nos braços. Em outras palavras: ela é a ausência – ela existe, mas é a existência como mancha, borrão cada vez mais pálido, transparência. Quando a colocamos sentada no sofá, é como se não estivesse lá, e tenho a certeza de que, se fosse um cadáver, todos reparariam. É como se um corpo morto representasse a derradeira concretude não apenas do que deixou de existir, mas também do que existiu – ainda que em cores pálidas, desbotadas, degradantes – durante tanto tempo. Quero acreditar que, quando a avó ainda viva morrer, e quando todos nós estivermos diante de seu cadáver, ela deixará de ser ausência. Ela voltará enquanto coisa viva que não existe mais e trará o espanto, talvez a dor, talvez a memória, talvez até a literatura e então será possível uma detalhada narração de seus últimos anos e agonia. Poderá alguém vir e dizer o quanto era comovente a demência, o corpo abandonado no sofá e outras imagens poderão ser evocadas. Talvez o canteiro de rosas e ervas cultivados por ela e o cheiro de hortelã nas tardes de calor. A concretude da morte enquanto madeleine.