sexta-feira, 30 de novembro de 2007

a amiga americana

Em O Amigo Americano, Tom Ripley vive em Hamburgo como um negociante de artes. Na verdade, Ripley é um falsário entre falsários: além de vender as obras assinadas por um pintor que finge estar morto, ele próprio assumiu o nome-rosto-exílio de um homem cuja identidade foi roubada e que nunca poderá voltar para casa (o que há de errado com um cowboy em Hamburgo? – indaga Ripley, trajado como se vivesse nos ermos do Texas ou Missouri, e a pergunta dá a medida de seu deslocamento e desespero). É na condição de negociante de artes que ele conhece Jonathan Zimmerman: este é um homem honesto, um antigo restaurador, hoje emoldurador – e também um sujeito que sofre de uma incomum doença no sangue, e por conta disso talvez esteja fadado a morte. Quando apresentado a Tom Ripley, Jonathan recusa-se a apertar a sua mão. Com um tom de desprezo na voz, diz eu já ouvi falar de você. Apenas por isso, em retaliação a essa demonstração de asco, Ripley decide arruinar a existência de Jonathan Zimmermam. Ao ser questionado pelo próprio Jonathan sobre as suas motivações, ele relembra o que se passou quando foram apresentados e afirma é um motivo bom o bastante, não?

O filme eu vi há algumas semanas, mas esta frase – é um motivo bom o bastante, não? – foi lembrada por mim ontem. Eu escutava Dean Martin e pensava na época em que ainda não escutava Dean Martin; a época na qual pensava que Martin tinha sido apenas um ator cujo melhor papel fora o do bêbado no faroeste Onde Começa O Inferno (Rio Bravo). Foi há anos, quando ainda estudava Direito. Uma colega tinha uma irmã que vivia nos Estados Unidos; uma cidade bem ao norte, na fronteira com o Canadá, e uma vez por mês ela mandava fotos da neve e às vezes das flores que cresciam na neve. Esta menina que vivia na fronteira com o Canadá tinha um nome estrangeiro, também isso me atraiu. Naqueles anos ainda impúberes eu realmente acreditava que teria mais sorte com um rapariga de nome Isabelle, ao passo que um abismo intrasponível me separava das isabelas ou isabéis. Depois, e não me lembro por que falávamos sobre isso, a minha colega disse que a sua irmã de nome estrangeiro gostava de ouvir Dean Martin. Por isso comecei a gostar dela – porque ela ouvia Dean Martin – e se alguém me perguntasse sobre os meus motivos eu bem que poderia parafrasear Tom Ripley: é um motivo bom o bastante, não?


Meses depois a rapariga de nome estrangeiro voltou para o sul e a conheci. Não só o nariz, também a sua boca era fina e pequena e, no entanto, docemente sanguínea. A pele era clara, de uma palidez igualemente forasteira, enquanto os cabelos ondulados mal passavam da altura do pescoço. Aliás, devo dizer que, debaixo do sol, o corpo dessa menina sofria metamorfoses fulgurantes: o tom castanho (e petrificado) dos olhos assumia uma liquidez cor de mel; o rosto, apesar de continuar claro, afogueava-se e a boca vermelha e singela chegava a se intumescer, quase a desabrochar; e os cabelos ganhavam um brilho avermelhado. Com tudo isso, os meus motivos, que já eram bons o suficiente, tornaram-se incontestáveis. Todavia, não foi das mais vitoriosas a relação que tive com ela. Descobri que o abismo que me separa da isabelas também me separa das isabelles e demais miúdas de palidez e nome estrangeiros. Está certo, trocamos algumas palavras, até risos, e durante uma tarde de terça-feira fomos ao cinema. A despeito de não ser muito, também não é pouco. E não é por despeito que digo que, nas semanas que sucederam o seu retorno, ela viveu o ápice de sua beleza que florescera no norte e que agora vinha ao sul. A doce e branda claridade de abril-maio não tardou em ir embora e, no outono seguinte, quando retornou, já não colheu qualquer metamorfose. O que me leva a pensar que talvez seja ainda mais breve o esplendor das isabelles que ouvem Dean Martin e que se transformam sob a luz e que às vezes fotografam as flores que crescem em meio à neve.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

passeios

Pode ser que a falta de fôlego (tão logo alcanço a Praça do Teatro, sinto ardentes e irrespiráveis o ar e a luz) não seja sinal de velhice. Talvez a cidade já não me seduza como antes. Muitas vezes sinto que todas as esquinas e caminhos foram desbravados, de modo que não é possível ir adiante. Seria o mesmo que tentar prorrogar o período das grandes descobertas e navegações até os séculos XIX e XX. Não, a rota para as Índias já foi traçada, a América já foi encontrada – todas as caravelas lançaram-se ao mar, naufragaram as que não alcançaram o seu destino, e o Encoberto permanece encoberto.

Disse tudo isso a um amigo, semanas atrás, e ele me respondeu que é sempre possível encontrar um novo atalho para fronteiras bárbaras. Sursum corda!

Concordei, mas dias depois – era tarde de sábado, fui até o quintal e olhei para o sol a fim de me decidir, e o que percebi foi o vagoroso, quase impercetível fluir das horas escaldantes, o cheiro da terra queimada, e os ventos pesados e espessos que mal agitavam as folhas das bananeiras – usei o carro para ir até o centro comprar um livro.

Enquanto dirigia, lembrei-me dos dias que vieram após a morte da avó. Quando eu passava as manhãs – junto da mãe – rexemendo nos armários, decidindo o que seria guardado e que iria para o lixo. Um dos achados mais insólitos foi um verde olho de vidro que apareceu no fundo de uma gaveta. Também encontrei inúmeros dentes dentro de uma caixa de sabonete e, ao lado, uma dentadura de pelo menos 30 anos. Depois, deparei-me com uma enferrujada câmera fotográfica; o revólver que pertencera ao avô na década de 50; porcelana e cristal em excelente estado; caixas (de lata) de biscoitos. À medida que revirava tudo isso, sentia-me sujo, como se tocasse objetos dignos de repugnância. No entanto, isso não era o pior. O pior era levar os armários e demais mobílias (comidas por cupins) até o quintal e, com uma marreta, reduzi-las a pequenos pedaços de madeira, depois enfiar tudo numa carriola e jogar na caçamba que fora alugada. Após um dia de trabalho assim – que terminava pouco depois das cinco horas – era impossível permanecer em casa. Eu saía e ia muito além das praças do Teatro e da Catedral. Andava até os limites da cidade velha. Até os quarteirões onde os prédios acabavam e, em meio a poeira e a lama dos terrenos baldios, começavam novamente residências.

Do dia da morte da avó (início de outubro) até as festas em dezembro quase não choveu. Se me recordo bem, o estio terminou no entardecer da véspera de natal. Eu e o pai tínhamos saído para alimentar os animais da praça quando um aguaceiro nos apanhou. Escondemo-nos debaixo de uma marquise. A chuva não chegava a ser forte, mas os pingos eram grossos, e, vez ou outra, um sopro de vento soltava um frêmito das copas das árvores. O ocaso não foi mais do que uma penumbra cinza pousando sobre os telhados, como se as nuvens estivessem cada vez mais baixas. As luzes nos postes acenderam-se e, por um momento, foi como se esse céu plúmbeo estivesse cravejado de gordas estrelas douradas. A essa altura, a chuva caía fraca, embora correntes de vento ainda brandissem os galhos das árvores, mas agora sem qualquer frêmito. Eu não sabia se considerava tudo aquilo ou bonito ou triste ou apenas conveniente para a data e para o meu espírito – sabia apenas que era inútil, que o entardecer ficaria em mim como um vislumbre de beleza ou ternura e que às vezes eu sentiria a necessidade de resgatá-lo, mas apenas isso; nenhuma esperança e nenhum renascimento. De qualquer modo, a ternura perdurava quando saímos da proteção da marquise e caminhamos até o jardim coberto por pétalas amarelas e iluminado por luzes que ardiam (um fulgor avermelhado, perto de se extinguir) em globos que lembravam lanternas japoneses. Tal o cenário: o céu cinza, nas ruas um brilho dourado, dentro da praça chamas escarlates, o chão coberto por pétalas de flores e bosta de pássaros que tinham assumido a textura de um musgo escorregadio, os bancos de madeira em ruínas, e debaixo de um deles um cachorro também perto da extinção, que pouco ligou para a comida deixada por mim e pelo pai. No caminho de volta, ao passarmos diante do bar onde os homens se reúnem para jogar cartas e dominó, fomos saudados por um sujeito que entrou em seu carro e saiu em disparada. A ternura começava a se abrandar, uma nova sombra de asco avizinhava-se, e não apenas isso – exaustão também, cansaço de existir na cidade, a falta de ânimo para sair nos sábados seguintes e procurar garotas e ficar embriagado como aquele homem que, saudando a todos, saía alucinado.
Hoje quase já não saio para passear, mas às vezes, durante uma dessas minhas raras deambulações, até alcanço ruas que me são desconhecidas. Foi assim na última sexta, quando, aproveitando que nos dias de calor a noite demora a pousar, decidir ir ao sul de uma avenida larga e habitada por prédios de no máximo dois andares – um arremedo do que imagino ser a Hollywood Boulevard. Dobrando esquinas angulosas, fui me afastando cada vez mais da avenida. Quando dei por mim, perambulava por uma rua invadida pelo mato, sendo obrigado a desviar de galos. Ao atingir o ponto mais ao sul possível, comecei a subir. Tomei uma rua de início paralela à avenida, mas que com esta convergiria ao oeste, na sua numeração mais alta. A intersecção, percebi com uma antecedência de duzentos metros, seria ao pé de um auspicioso edifício erguido há poucas semanas. À medida que me aproximava, mais ermos ficavam os quarteirões (durante todo o trajeto não houve nem sequer uma silhueta de mulher que eu pudesse perseguir). Por fim cheguei a uma praça que me pareceu vazia, onde, no lugar que deveria pertencer ao coreto ou ao chafariz ou à imagem do soldado desconhecido, havia a estátua de uma carruagem conduzida por um anjo – o que me pareceu ser uma evocação dos Portões de Brandemburgo. Olhando com mais atenção, vi um bando de velhos que, na companhia do seus cães ou netos, descansavam nos bancos (brancos como mármore), outros exercitavam-se sob a diáfana (até meridiana) luz do entardecer. Não é possível ir adiante, pensei comigo mesmo, e iniciei o caminho de volta. Enquanto caminhava ao largo da praça e do condomínio, até pensei em Kaváfis, nos bárbaros que nunca haverão de chegar (pois aqui já estão) e na espera que não existe e que talvez nunca tenha existido. O que resta é morrer sob o sol, como se nunca tivesse havido noite ou brumas que se ergueram na distância e roeram os ossos dos encoberto e outros infantes ou deuses. Estes, disse a mim mesmo num dos meus delírios de fuga, jazem em outras fronteiras; além desses falsos portões e além dessa luz límpida, duradoura, inócua.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Três Poetas

1. T.S. Eliot foi o primeiro poeta que tentei ler a sério, aos dezenove anos, e ainda hoje mantenho muitas das minhas primeiras impressões: o fascínio por uma erudição que não se fecha em si mesma – que vai ao encontro da emoção (ou fuga da emoção, para adequar o texto a uma idéia cunhada pelo próprio Eliot) e de um pensamento sólido e coeso, dando origem a uma linguagem apurada, capaz de criar algumas das mais belas imagens que já encontrei na poesia. Apenas puxando pela memória, evoco as gaivotas que, na aurora onde se entrecruzam dois sonhos, adejam sobre a praia; os ossos esquecidos sob o Ganges; a luz dos archotes queimando rostos marcados pelo estoicismo e desolação; a ardente rosa do oblívio e da piedade; os pensamentos que fluem cruéis como a torrente de um rio na natureza de uma tarde de verão; o céu crepuscular estendido no horizonte como um corpo morto; o cadáver do alto e belo Flebas sendo roído pelas correntezas submarinas; o Rei Pescador; a chegada das chuvas em Abril revolvendo a terra semeada por raízes e flores agônicas; o cão que desenterra os mortos; o vento que uiva contra as portas; o estrondo do trovão sobre as montanhas; o lixo acumulado no leito do rio ao fim de um piquenique; a Palavra inexpressa. Essas imagens tiveram um impacto tão grande em mim que eu, ao tentar os meus primeiros poemas, busquei emulá-las, e vez ou outra até conseguia escrever versos dignos de um prodígio. Ofereço como exemplo os versos abaixo, recordados pelo amigo Nuno Dempster no comentário da postagem anterior:

Já quatro vezes me tinham apontado uma arma.
A última ameaça fora a mais terrível de todas,
fez-me sonhar com um mar furioso. Era noite
e os nossos rostos eram moldados pela brisa
que nos meses quentes antecepe as tempestades.
Do meu lado, num miramar, o pai
e seu último irmão vivo;
este agonizava, e com o câncer e a tosse
veio o desejo de ser batizado naquela praia.

"Vejam", disse o tio, fitando o mar e as rochas,
"Tudo isto é Deus, sim, tudo isto é Deus,
não preciso que um sacerdote cinja a minha fronte".

Sobre a sequíssima areia caminhou rumo à praia.
A água do mar mostrou-se apenas salgada,
corroeu a sua carne dorida, exasperou o espírito
sedento de palavras, signficados, símbolos.
Aflito e cobiçando ser pó, sentou-se nas dunas:
o seu derradeiro verso era os vermes em sua face
iluminada pelo sol que já irrompe fustigante.

"Lázaro morreu uma segunda vez."

2. Seria odioso defender o meu encanto por Manuel Bandeira com a alegação de que se trata de um conterrâneo. Todavia, sou lembrado disso após ler qualquer poema seu – logo percebo que os versos foram escritos por um homem que nasceu sob o mesmo sol que, todas as tardes, vejo estiolado no céu poente. Um sujeito que vivia em cidades parecidas com a minha; e as miúdas cantadas por ele (seja Jacqueline que morreu menina e que morta era mais bonita do que os anjos, ou as três moças do Sabonete Araxá, ou as mulheres puras o bastante para saciar a vontade dos homens impuros, ou a imensamente bela e até redentora mulher que é apresentada em seu Madrigal Melancólico) eram feitas da mesma luz – a mesma luz fugaz e precária – que afogueia os rostos das meninas que vejo andar pelas ruas. Mas escrever apenas isso não basta. Também admiro a riqueza de um pensamento que sempre interpretei marcado por inversões ou ambigüidades. Versos a princípio introspectivos se mostravam fatalistas. Em contrapartida, havia poemas que, a despeito de um começo sombrio, desaguavam numa terna e humilde reflexão; e nunca percebi tanta alegria conspurcada de tristeza e tanta melancolia sufocada por euforia inconseqüente, alucinada. Acredito que o eterno, em Bandeira, nunca foi uma obsessão: essa sanha de revelar-se superior, de destilar teorias sobre a imbecilidade alheia. Em Bandeira, a eternidade decorre de um passeio pela praça de uma cidade poeirenta – e, se ele diz a vida é agitação feroz e sem finalidade, diz com uma raiva que não é raiva e com um desprezo que em momento algum é desprezo. Apenas escreve como quem dá de ombros, e também foi assim – como quem dá de ombros - que a sua poesia aproximou-se de mim, tornou-se íntima, essencial para a noção de identidade que julgo trazer no sangue. Pois, se para mim o mississipi nunca existiria sem Faulkner, tampouco existiria sem Manuel Bandeira.
3. Embora nascido em Alexandria, Konstantinos Kaváfis é tido como o melhor poeta grego no século XX. Motivos para isso não faltam. Em Kaváfis, o que mais me impressiona é o diálogo que ele estabelece entre o eterno e a sua condição de homem contemporâneo. Aliás, acredito que a excelência de seus versos pode ser encerrada numa fórmula simples e fácil apenas na aparência: o encontro entre a concisão (seus poemas eram breves) e uma linguagem cristalina, tão solar quanto atemporal. O principal tema de Kaváfis é o passado: seja o passado do corpo (a interminável evocação dos amores hedônicos da mocidade), seja o passado da sua herança cultural – ele que trazia no sangue o ocaso de uma luz ora bizantina, ora helênica, e que muitas vezes se fundiam num único e crepuscular ardor. Dos poemas escritos por Kaváfis, sempre me intrigaram os que receberam os seguintes títulos: Dias de 1903, Dias de 1901, Dias de 1896 – como se o que ficasse fosse apenas a memória de dias e, em muitos casos, nem isso. Ainda sou jovem, mas quando olho para trás não posso deixar de constatar a verdade desses versos e reminiscências. Dos dias de 97 não consigo evocar mais do que os primeiros passeios noturnos pelas ruas da cidade velha, rostos e corpos de garotas (rostos e corpos que permanecem, em mim, como belos corpos de mortos que nunca nunca envelheceram, / com lágrimas sepultos em mausoléus brilhantes, / jasmim nos pés, cabeça circundada de rosas, e como isso dói) e o sol da tarde entrando no segundo andar do Pato. Dos dias de 98, as memórias não são muito diferentes. De 99 sobrevivem vestígios de um amor quase puro que senti, isso em dezembro, e que perfume forte tiveram as flores naquele verão. Assim fluem as lembranças: em 2002 um novo encontro com o amor e mais, a certeza de triunfar sobre ele; em 2004 e 2005, os meus anos mais mundanos, cheiro de bebida, corpos de mulheres cobertos por um suor que se misturava com a doçura da água de colônia, o reflexo das luzes no asfalto após uma noite de chuva, a incrível raiva e frustração de um desejo que nunca arrefecia, o olor de samambaias na noite em que a avó morreu, e depois, em 2006, nova possibilidade de triunfar sobre o amor, uma última convulsão de fúria sensual, a luz amarela que descia do alto dos postes, as muitas noites de chuva, a realidade assumindo uma dimensão mais etérea do que nunca. De tudo isso me lembro: é pouco, e percebo que esquecerei ainda mais nos próximos anos – a não ser que eu me depare com a madeleine que, milagrosa, irá me restituir todas as sensações e minutos do tempo evanescente, apesar de eu saber desde já: a devolução de uma realidade em fuga não impede que essa continue fugindo.

sábado, 17 de novembro de 2007

últimos dias de aulas

Estávamos no segundo andar do Pato e formávamos um semi-círculo ao redor da única mesa de bilhar em condições de uso (a outra mesa fora coberta por um plástico grosso e imundo). Dos cantos do cômodo, exalando um cheiro gelado, pedaços de gesso, tijolos, sacos de cal e cimento pela metade. O sol entrava oblíquo, após roçar – também inclinado – a cruz da catedral e o ponto mais alto das árvores; um sol fino, ardente e silencioso de começo de verão. Mas pode ser que o silêncio não habitasse aquela luz que era, a um só tempo, pura e impura: o silêncio parecia transcendê-la para, no instante seguinte, revelar-se aquém dela. Para não pagar mais do que uma ficha, tínhamos usado o truque de bloquear as entradas de todas as caçapas. As bolas não caíam. Apenas deslizavam, silentes e sem qualquer atrito, sobre o feltro da mesa, entrando na luz e saindo da luz como se isso não significasse nada (o que, de fato, não significava). A graça do jogo, agora sabíamos, era matar as bolas e escutá-las dentro da mesa;aquele ruído de mármore correndo sobre a madeira e depois um baque surdo e em seguida o silêncio. Ninguém tinha vontade de falar porque era o último dia de aulas e tínhamos a consciência de que fracassaríamos na prova do domingo. Tal insucesso fora auguriado por todos há pelos seis meses, mas o que ninguém suspeitara é que o tempo jogado fora assumiria a concretude de uma carcaça, e mais – por vezes o cadáver desse ano desperdiçado, diante de nós, surgia como o cadáver do pai, ou, em casos extremos, aparecia como o nosso próprio corpo morto. Por isso não jogamos até depois do anoitecer. Encerramos as atividades quando havia sol e caminhamos juntos por alguns quarteirões. Depois o grupo se dispersou. Mas ainda estávamos unidos quando cruzamos a Praça da Catedral. Quando a luz – que ainda descia oblíqua e ansiosa – roçava a cúpula da igreja e os verdes ramos das árvores.
No outro ano, aconteceu a vitória. Saímos da escola após a primeira troca de professores, ainda antes das duas da tarde. Não me lembro do nome do rapaz – não conversávamos muito, mas nas últimas semanas, com a progressiva escassez de alunos, tínhamos nos aproximado – que nos levou de carro até o mais elegante centro de compras da cidade. Também não recordo o que procurávamos lá. Imagino que eram garotas, e é certo que as observamos, pelos corredores ou diante das vitrines das lojas. Depois, ao percebermos que qualquer abordagem seria ridícula, seguimos para uma lanchonete nas imediações da Avenida Nove de Julho. Era divertido bancar o vagabundo durante a tarde de um dia útil; um papel que eu já desempenhara antes, mas nunca com tantos recursos, dispondo de um chauffeur que me levaria onde quer que desejasse ir. Pedimos sanduíches, sucos e comemos na área externa da lanchonete. Não havia ninguém por perto. O sol estava brando e cristalino, e a direção para a qual soprava o vento afastava o cheiro de gordura e trazia um quase imperceptível perfume de árvores e flores no final da primavera. Após o lanche, o chauffeur sem nome disse que precisava ir embora. Enquanto nos despedíamos (estávamos todos na esquina), meu pai passou de carro e me viu. Estavam com ele minha mãe e a irmã. Creio que retornavam de alguma consulta médica e, ao me avistarem, gritaram e acenaram, não sei se bravos ou apenas surpreendidos. Tive medo, mas o veículo dobrou uma esquina e não retornou. Caminhamos rumo aos quarteirões da cidade velha, onde era possível jogar bilhar. Com o Pato às portas da falência, decidimos ir a um estabelecimento mais ao sul – este de reputação duvidosa. No trajeto vimos um homem e um iguana. O lagarto, como se fosse um pássaro monstruoso, repousava no ombro do seu dono, mas em dado momento saltou ao solo e, sempre muito veloz, correu até a pequena árvore que ficava diante da loja, escalando-a. Contemplamos a cena com asco, embora também tivéssemos o espírito calmo, donos de uma tranqüilidade de que observa um evento apenas porque este é curioso. No salão de bilhar não encontramos nada que fosse duvidoso ou ambíguo: vimos uma fileira de mesas e o sol, que entrava pela porta descida até a metade, pousando sobre algumas, o que ofuscava e feria os olhos. Nos cantos, homens feios conversavam com mulheres feias. Para minha vergonha, pois tinha a fama de ser o jogador mais hábil, perdi várias partidas na seqüência. Não podia terminar o ano daquela forma, humilhado, e, assim como Shane deixa para trás os planos de ser um bom homem apenas para não ser surrado diante do garoto que o admira, tentei sorrir com o canto da boca e anuncei que venceria todos os jogos restantes.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

sobre a impossibilidade de estar alegre

Muitas vezes chego a desprezar o elogio que se faz do visceral. Como se o homem pudesse ser apenas redimido pelo que possui de animalesco.
Não que esses apetites não rebentem em mim: rebentam com tanta força – e são calados a um custo tão alto – que há em dias em que não espero mais do que uma alegria calma. Essa alegria sem qualquer aspereza, que às vezes se confunde com um desejo de evasão, um suave anseio de fuga. Como se fosse possível não estar morto e também não estar vivo. Estar, em suma, o mais próximo possível do não-existir, ou melhor, do não-sentir. Todavia, assim como o animalesco e o inumano (uma vez passada a fúria) despertam para o humano, o que não é morte é vida, e não é possível estar em outro lugar além de mim mesmo. Aliás, pode ser que essa calma alegria não seja mais do que uma tristeza pacífica. Consegui-la já é conseguir muito.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

novembro

O ano termina e ameaça cobrar a sua conta. Escrevi pouco, mas ainda assim foi mais do que no ano passado, quando não escrevi nada – 2006, o início do meu período mais estóico. Ainda hoje vivo dias de abnegação, mas começo a fraquejar. Acredito que essa estadia em montevidéu é o maior sinal dessa exaustão. No entanto, o pouco tempo que passo aqui é aflitivo pois não permite mais do que anotações esparsas, desconexas. Lembro-me de um sujeito que dizia que meu nome era Joe. Ele simpatizava comigo e essa empatia pode ter me poupado de conhecer a sua natureza mais violenta, mas ela existia. Por meses, acompanhei a trajetória desse sujeito pela cidade: até mim chegaram relatos tenebrosos, em duas ou três noites lhe paguei cerveja e aguardente, conheci a garota de rosto destruído que ele explorava e também o vi acompanhado de raparigas bonitas. Esta amizade da qual me envergonho merece um conto, uma reflexão mais apurada, mas agora não há tempo para isso. E há Nágila, aquela miúda de dente lascado que estudou comigo quando eu tinha dezessete anos. Ela me parecia ser uma das mais cândidas da classe. Talvez por isso tenha ficado em meu sangue, ou pode ser pelo fato de que, numa conversa com Cartago, elegemos o seu corpo nu (do qual tínhamos apenas uma idéia sonhadora-imprecisa-trêmula) como o mais bonito de todos. Após ingressar na faculdade, nunca mais a vi, mas há meses sonhei com ela – e é um sonho que não me sai da cabeça. Eu estou na capital e caminho pelos corredores de um prédio antigo, as paredes cobertas de mofo esverdeado. Alguém me acompanha, mas é irrelevante saber quem é, também eu desconheço. Abro uma porta e estou diante da antiga colega de classe: Nágila aos vinte e oito anos de idade, mais alta, o corpo severo e implacável. Agora ela é uma uma prostituta cujo trabalho é surrar e humilhar homens. Também sobre isso, sobre esse impossível e onírico reencontro com Nágila, gostaria de refletir . E há mais. Se vasculho a memória encontro a história do estrangeiro que chega a um lugar onde nunca esteve em busca da menina que, por alguns meses, trabalhou em sua casa como au pair. Ele vem após a morte do filho e o reencontro com a miúda (e a bizarra história de amor que decorre desse encontro) é outra idéia que preciso trabalhar com calma. Aliás, não é apenas o amor e o sexo em suas manifestações mais sórdidas-incomuns que ocupam os meus pensamentos. Há o projeto de uma história que, é quase certo, exigirá mais páginas do que um conto: a quase documental narração de um começo de namoro, uma novela que acalento há anos e cuja epígrafe (e tom) descobri no filme que vi dias atrás – "Amor À Tarde", de Eric Rohmer. No filme conhecemos Frederic, um homem bem casado que, nas horas de folga, vagueia por Paris enquanto tem, diante de si, um desfile das mais lindas garotas. Ele quer todas, mas não se lamenta (pelo contrário, até agradece) por saber que nunca mais verá cada uma dessas meninas que cruzam o seu caminho, e nem sequer fica intimidado quando vê uma delas nos braços de um namorado: ele sabe o destino que aguarda o amor, sabe como as relações afetivas envelhecem e se estabilizam, e em dado momento devaneia (a tal epígrafe): sonho com um mundo feito apenas de primeiros amores e amores eternos – e é sobre isso que gostaria de escrever, sobre essa dilacerante luta entre o efêmero e o que permanece, a luta contra o corpo, contra a fossilização do amor. A todas essas histórias pretendo retornar depois do dia 25 de novembro, que é a data da última prova, e no ano que vem espero estar liberto, pois, como disse, alcancei o limite do estoicismo. No entanto, enquanto essa liberdade mentirosa não vem sigo com as anotações esparsas, leituras de livros curtos (para não me comprometer por semanas e atrapalhar os estudos), canções de amor dos anos 50 ou 60, embora às vezes eu sinta esse doloroso anseio pelo sublime. Aconteceu hoje quando, cansado das domésticas canções de amor, ouvi Bach após meses, anos. Foi triste – e belo – porque tive pensamentos e almejei alturas inalcançáveis.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

educação cinematográfica

Não sei se as musas existem. Eu, pelo menos, nunca tive uma. Há uma garota de rosto e corpo bonitos. Diante desta rapariga é possível pintar aquarelas, compor canções, odes, elegias, sonatas, romances; mas a verdade é que não sei o que isso significa. Sei que existe a beleza, e mais: sei que existe uma idéia – que também é um anseio – do que é a beleza. Quando um cérebro ou espírito criativo (ou que assim se julga) se vê perante tal espetáculo, é natural o sobressalto, o espanto, a ânsia de capturar e depois expulsar para fora de si tudo o que foi suscitado por tamanho esplendor. Mas essa beleza pode ser tanto encontrada no rosto de uma menina como também numa cadeira ou vaso sanitário. Basta ter o sopro.

Quanto a mim, nunca tive paciência para contemplar cadeiras e vasos sanitários. Tenho os meus gatos (muito charmosos), reconheço que filhotinhos de cachorro são um dos poucos acertos do divino, adoro algumas esquinas da cidade velha e – vá lá – gosto de árvores frondosas, tardes de chuva, poentes lentos macios incendiados. Mas nada disso me impediu de ter um cérebro ou espírito dos mais sanguíneos. A maior fonte de beleza ainda são as garotas; sejam as meninas da porta vizinha, sejam as ungidas por poeira de arco-íris, habitantes de um olimpo para o qual não nasci, e que, por esse motivo mesquinho, interessam-me menos.

É óbvio que há exceções. Um exemplo é Eva Green. Ao ver Os Sonhadores passei noites insones, quase sonâmbulo. Os cabelos castanhos; a pele insuportavelmente tangível e, no entanto, inalcançável; a placidez e a inocência (tão evanescente) do rosto; a boca vermelha, que às vezes se abre num esgar que é uma mistura de escárnio e lascívia e ternura – tudo isso me assombrou por um bom tempo.

A Doutora Cameron, da série House, foi outra que esteve perto de minhas entranhas, e não tanto por ser bonita, mas por sua mórbida e dolorosa indulgência em relação aos tipos mais desajustados (pois o meu gosto para mulheres, embora resvale o óbvio, ostenta matizes de morbidez e perversão). Marie Laforet, em O Sol Por Testemunha (e apenas em O Sol Por Testemunha) fluiu em meu sangue por um par de noites, façanha também conseguida por Catherine Spaak em Aquele Que Sabe Viver.

No entanto, a primeira garota olímpica a chamar a minha atenção foi Martina Hingis. Corria janeiro de 1999 e eu tentava repousar após dois anos de cursos pré-vestibulares. Na primeira quinzena do mês, fui ao mar, mas choveu todos os dias e quase não desfrutei da viagem. No final do dia, quando a chuva parava (e o ar ficava impregnado de cheiros confusos: tábuas podres, quase mofadas; a doçura da terra e das árvores encharcadas; a maresia salgada, fina, vagamente nostálgica, pois eu não descia ao mar há mais de cinco anos), eu saía com o pai para jogar sinuca num bar quase em ruínas, que ficava em frente ao cemitério da cidade, ou passava numa banca de jornais que apenas vendia livros imprestáveis. Por conta de tudo isso, já tinha lido o bastante (para as férias) quando, de volta à cidade, resolvi gastar a quinzena final de janeiro da maneira mais ociosa e solitária possível. No segundo ou terceiro dia de inércia, descobri, num canal da tevê paga, o Aberto da Austrália de Tênis. Logo em seguida descobri Hingis. Mais jovem do que eu. Um corpo delicado e pequeno (quase impúbere) para uma tenista; e os olhos verdes; e a pele muito branca e o olhar suplicante na direção da mãe (então a sua treinadora) após cada ponto perdido. Ela já era a número um do mundo. Para assistir à final, recusei um convite para sair, e depois, ao vê-la desfilando com o troféu – com um vestido vermelho incandescente, o rosto também afogueado, o fulgor dos olhos verdes, a pele rosada docemente marcada pelo sol nos ombros e no pescoço – apaixonei-me. Como se ela fosse uma menina da vizinhança, ou como se eu tivesse reais condições de ascender aos cumes da glória e da fama apenas para tê-la.

Seguiu o ano. Fui estudar cinema. Naquela época e naquele lugar de grunges tardios – quando todos os rapazolas sonhavam em foder Kim Deal – eu pensava, secretamente, na bela e eterna Martina. Passei a acompanhar sua carreira. Vi, com desespero, a trágica final em Rolland Garros, quando perdeu (um jogo ganho) de Steffi Graf, brigou com os juízes e, humilhada, saiu vaiada pelo público. Então veio a derrocada, a escassez de títulos, a ascenção das irmãs Williams, Lindsay Davenport, Jennifer Capriati e outras jogadores nada singelas. Após contusões e brigas com a mãe, Hingis interrompeu a carreira. Surgiram rumores de casos amorosos, um mais lamentável que o outro, e depois, quando as garotas bonitas voltaram a dominar o circuito, eu já tinha o coração morto para as beldades do olimpo.

Foi com esse ceticismo que vi o seu retorno às quadras no começo de 2006. Acompanhei as primeiras partidas após o regresso com a dúbia sensação de que aquela era e não era a Martina de outrora. Os olhos cintilavam como antes; o rosto ainda permanecia afogueado; e descobri no corpo, eu que me acostumara à singeleza de anos atrás, a glória ou pelo menos a insinuação de uma carnalidade perto de explodir. As vitórias não vieram, mas a verdade é que dela já não esperava qualquer triunfo, apenas um retorno digno e calmo: sem conquistas e também sem humilhações.

Mas agora, enquanto relembro, não sei se um regresso sem humilhações garante um fim digno e calmo. Pode ser que um vencedor, pelo simples fato de deixar de ganhar, torne-se um perdedor. Nesse caso, a angústia, o desgosto e a raiva podem ser ainda maiores. Hingis retornara e, com resultados apenas razoáveis, longe de realizar façanhas, conseguiu ficar entre as 20 melhores. No entanto, após cada eliminação na primeira rodada – ou derrota para jogadora nunca antes vista, ou desempenho tido como excelente por ter alcançando apenas as quartas-de-final – a minha memória cinematográfica foi aproximando Martina de outro olimpo, este em ruínas e habitado por perdedores (alguns charmosos, outros crônicos), prodígios nunca consumados e deuses caídos: figuras exploradas à exaustão pelo cinema norte-americano dos anos 40 e 50. Até pensei em cowboys que, após o esplendor na condição de assassinos ou ladrões de trens, definham em algum rancho nos ermos de Utah ou Missouri, em paz e à sombra da lenda criada. Melhor assim, pensava eu, do que a culpa – e depois o brutal retorno à violência – de William Munny; ou o périplo de Ethan Edwards pelas imensidões do Monument Valley, ele que, após a derrota do sul, recusa-se a voltar para casa e perde décadas buscando a sobrinha capturada pelos índios. Um homem que, após assassinar cada um destes índios, atira nos olhos dos cadáveres para impedir que a alma saia e suba.
Acontece que, conforme aprendi nestes mesmos filmes, estar distante (o tal rancho nos confins de Utah ou Missouri) não impede um último confronto com a existência que o perdedor (ou prodígio falso ou deus caído) tenta abandonar ou até manter. Pode-se dizer que esse olimpo subterrâneo é apenas temporário, daí a sua natureza purgatorial; apenas um lugar para se estar antes da morte, esquecimento, aceitação da derrota. E, lendo os jornais no decorrer da última semana, deparei-me com a notícia da aposentadoria de Martina Hingis, anunciada em razão de um exame de doping – realizado durante o último torneio de Wimbledon – ter revelado traços de cocaína. Li também que ela alega inocência e é possível que uma contra-prova contrarie o primeiro resultado. Ainda assim, não consigo imaginar desfecho mais melancólico para o seu precoce brilhantismo, e por conta disso também eu, no dia em que li a notícia, fiquei triste e pensativo. Sem saber o que virá agora, abanonei a comparação com os comboys desditosos e me fixei em outro filme sobre o fracasso: A Marca da Maldade (A Touch of Evil). Lembrei-me da frenética e corrupta cidade na fronteira com o México; da sensação de calor reverberando nas sombras noturnas; dos rostos suados; da revelação de que o personagem de Orson Welles (o mais poderoso policial da cidade) fizera a sua carreira adulterando e manipulando provas; e depois relembrei a sua queda, desespero e por fim a derrota final no outro lado da fronteira – uma cidade fantasmagórica, vazia, varrida por fortes ventos que traziam em si um cheiro do mar que nunca era visto, e ao longe (mas cada vez mais próximo) o som de uma pianola que tangia sem cessar uma áspera melodia, e o reencontro com Dietrich, a melancolia da banal conversa que vem a seguir (banalidade traída apenas quando a cartomante, com o rosto implacável, mira o homem gordo que tem diante de si e diz algo como: eu disse que você não deveria comer tantos doces), e depois a morte e corpo tombando sobre o mar que enfim é mostrado, tudo aos sons da pianola. Foi nesse cenário que enquadrei Hingis, ou melhor, foi esse cenário o pano de fundo dos meus pensamentos: eu melancólico, também um pouco derrotado, e a sensação de coração morto para o olimpo e as suas quases musas. No mais, canção, no mais­ – assim Camões encerrava, sabiamente, cantos de sua velhice.