quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Três Poetas

1. T.S. Eliot foi o primeiro poeta que tentei ler a sério, aos dezenove anos, e ainda hoje mantenho muitas das minhas primeiras impressões: o fascínio por uma erudição que não se fecha em si mesma – que vai ao encontro da emoção (ou fuga da emoção, para adequar o texto a uma idéia cunhada pelo próprio Eliot) e de um pensamento sólido e coeso, dando origem a uma linguagem apurada, capaz de criar algumas das mais belas imagens que já encontrei na poesia. Apenas puxando pela memória, evoco as gaivotas que, na aurora onde se entrecruzam dois sonhos, adejam sobre a praia; os ossos esquecidos sob o Ganges; a luz dos archotes queimando rostos marcados pelo estoicismo e desolação; a ardente rosa do oblívio e da piedade; os pensamentos que fluem cruéis como a torrente de um rio na natureza de uma tarde de verão; o céu crepuscular estendido no horizonte como um corpo morto; o cadáver do alto e belo Flebas sendo roído pelas correntezas submarinas; o Rei Pescador; a chegada das chuvas em Abril revolvendo a terra semeada por raízes e flores agônicas; o cão que desenterra os mortos; o vento que uiva contra as portas; o estrondo do trovão sobre as montanhas; o lixo acumulado no leito do rio ao fim de um piquenique; a Palavra inexpressa. Essas imagens tiveram um impacto tão grande em mim que eu, ao tentar os meus primeiros poemas, busquei emulá-las, e vez ou outra até conseguia escrever versos dignos de um prodígio. Ofereço como exemplo os versos abaixo, recordados pelo amigo Nuno Dempster no comentário da postagem anterior:

Já quatro vezes me tinham apontado uma arma.
A última ameaça fora a mais terrível de todas,
fez-me sonhar com um mar furioso. Era noite
e os nossos rostos eram moldados pela brisa
que nos meses quentes antecepe as tempestades.
Do meu lado, num miramar, o pai
e seu último irmão vivo;
este agonizava, e com o câncer e a tosse
veio o desejo de ser batizado naquela praia.

"Vejam", disse o tio, fitando o mar e as rochas,
"Tudo isto é Deus, sim, tudo isto é Deus,
não preciso que um sacerdote cinja a minha fronte".

Sobre a sequíssima areia caminhou rumo à praia.
A água do mar mostrou-se apenas salgada,
corroeu a sua carne dorida, exasperou o espírito
sedento de palavras, signficados, símbolos.
Aflito e cobiçando ser pó, sentou-se nas dunas:
o seu derradeiro verso era os vermes em sua face
iluminada pelo sol que já irrompe fustigante.

"Lázaro morreu uma segunda vez."

2. Seria odioso defender o meu encanto por Manuel Bandeira com a alegação de que se trata de um conterrâneo. Todavia, sou lembrado disso após ler qualquer poema seu – logo percebo que os versos foram escritos por um homem que nasceu sob o mesmo sol que, todas as tardes, vejo estiolado no céu poente. Um sujeito que vivia em cidades parecidas com a minha; e as miúdas cantadas por ele (seja Jacqueline que morreu menina e que morta era mais bonita do que os anjos, ou as três moças do Sabonete Araxá, ou as mulheres puras o bastante para saciar a vontade dos homens impuros, ou a imensamente bela e até redentora mulher que é apresentada em seu Madrigal Melancólico) eram feitas da mesma luz – a mesma luz fugaz e precária – que afogueia os rostos das meninas que vejo andar pelas ruas. Mas escrever apenas isso não basta. Também admiro a riqueza de um pensamento que sempre interpretei marcado por inversões ou ambigüidades. Versos a princípio introspectivos se mostravam fatalistas. Em contrapartida, havia poemas que, a despeito de um começo sombrio, desaguavam numa terna e humilde reflexão; e nunca percebi tanta alegria conspurcada de tristeza e tanta melancolia sufocada por euforia inconseqüente, alucinada. Acredito que o eterno, em Bandeira, nunca foi uma obsessão: essa sanha de revelar-se superior, de destilar teorias sobre a imbecilidade alheia. Em Bandeira, a eternidade decorre de um passeio pela praça de uma cidade poeirenta – e, se ele diz a vida é agitação feroz e sem finalidade, diz com uma raiva que não é raiva e com um desprezo que em momento algum é desprezo. Apenas escreve como quem dá de ombros, e também foi assim – como quem dá de ombros - que a sua poesia aproximou-se de mim, tornou-se íntima, essencial para a noção de identidade que julgo trazer no sangue. Pois, se para mim o mississipi nunca existiria sem Faulkner, tampouco existiria sem Manuel Bandeira.
3. Embora nascido em Alexandria, Konstantinos Kaváfis é tido como o melhor poeta grego no século XX. Motivos para isso não faltam. Em Kaváfis, o que mais me impressiona é o diálogo que ele estabelece entre o eterno e a sua condição de homem contemporâneo. Aliás, acredito que a excelência de seus versos pode ser encerrada numa fórmula simples e fácil apenas na aparência: o encontro entre a concisão (seus poemas eram breves) e uma linguagem cristalina, tão solar quanto atemporal. O principal tema de Kaváfis é o passado: seja o passado do corpo (a interminável evocação dos amores hedônicos da mocidade), seja o passado da sua herança cultural – ele que trazia no sangue o ocaso de uma luz ora bizantina, ora helênica, e que muitas vezes se fundiam num único e crepuscular ardor. Dos poemas escritos por Kaváfis, sempre me intrigaram os que receberam os seguintes títulos: Dias de 1903, Dias de 1901, Dias de 1896 – como se o que ficasse fosse apenas a memória de dias e, em muitos casos, nem isso. Ainda sou jovem, mas quando olho para trás não posso deixar de constatar a verdade desses versos e reminiscências. Dos dias de 97 não consigo evocar mais do que os primeiros passeios noturnos pelas ruas da cidade velha, rostos e corpos de garotas (rostos e corpos que permanecem, em mim, como belos corpos de mortos que nunca nunca envelheceram, / com lágrimas sepultos em mausoléus brilhantes, / jasmim nos pés, cabeça circundada de rosas, e como isso dói) e o sol da tarde entrando no segundo andar do Pato. Dos dias de 98, as memórias não são muito diferentes. De 99 sobrevivem vestígios de um amor quase puro que senti, isso em dezembro, e que perfume forte tiveram as flores naquele verão. Assim fluem as lembranças: em 2002 um novo encontro com o amor e mais, a certeza de triunfar sobre ele; em 2004 e 2005, os meus anos mais mundanos, cheiro de bebida, corpos de mulheres cobertos por um suor que se misturava com a doçura da água de colônia, o reflexo das luzes no asfalto após uma noite de chuva, a incrível raiva e frustração de um desejo que nunca arrefecia, o olor de samambaias na noite em que a avó morreu, e depois, em 2006, nova possibilidade de triunfar sobre o amor, uma última convulsão de fúria sensual, a luz amarela que descia do alto dos postes, as muitas noites de chuva, a realidade assumindo uma dimensão mais etérea do que nunca. De tudo isso me lembro: é pouco, e percebo que esquecerei ainda mais nos próximos anos – a não ser que eu me depare com a madeleine que, milagrosa, irá me restituir todas as sensações e minutos do tempo evanescente, apesar de eu saber desde já: a devolução de uma realidade em fuga não impede que essa continue fugindo.

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