sábado, 17 de novembro de 2007

últimos dias de aulas

Estávamos no segundo andar do Pato e formávamos um semi-círculo ao redor da única mesa de bilhar em condições de uso (a outra mesa fora coberta por um plástico grosso e imundo). Dos cantos do cômodo, exalando um cheiro gelado, pedaços de gesso, tijolos, sacos de cal e cimento pela metade. O sol entrava oblíquo, após roçar – também inclinado – a cruz da catedral e o ponto mais alto das árvores; um sol fino, ardente e silencioso de começo de verão. Mas pode ser que o silêncio não habitasse aquela luz que era, a um só tempo, pura e impura: o silêncio parecia transcendê-la para, no instante seguinte, revelar-se aquém dela. Para não pagar mais do que uma ficha, tínhamos usado o truque de bloquear as entradas de todas as caçapas. As bolas não caíam. Apenas deslizavam, silentes e sem qualquer atrito, sobre o feltro da mesa, entrando na luz e saindo da luz como se isso não significasse nada (o que, de fato, não significava). A graça do jogo, agora sabíamos, era matar as bolas e escutá-las dentro da mesa;aquele ruído de mármore correndo sobre a madeira e depois um baque surdo e em seguida o silêncio. Ninguém tinha vontade de falar porque era o último dia de aulas e tínhamos a consciência de que fracassaríamos na prova do domingo. Tal insucesso fora auguriado por todos há pelos seis meses, mas o que ninguém suspeitara é que o tempo jogado fora assumiria a concretude de uma carcaça, e mais – por vezes o cadáver desse ano desperdiçado, diante de nós, surgia como o cadáver do pai, ou, em casos extremos, aparecia como o nosso próprio corpo morto. Por isso não jogamos até depois do anoitecer. Encerramos as atividades quando havia sol e caminhamos juntos por alguns quarteirões. Depois o grupo se dispersou. Mas ainda estávamos unidos quando cruzamos a Praça da Catedral. Quando a luz – que ainda descia oblíqua e ansiosa – roçava a cúpula da igreja e os verdes ramos das árvores.
No outro ano, aconteceu a vitória. Saímos da escola após a primeira troca de professores, ainda antes das duas da tarde. Não me lembro do nome do rapaz – não conversávamos muito, mas nas últimas semanas, com a progressiva escassez de alunos, tínhamos nos aproximado – que nos levou de carro até o mais elegante centro de compras da cidade. Também não recordo o que procurávamos lá. Imagino que eram garotas, e é certo que as observamos, pelos corredores ou diante das vitrines das lojas. Depois, ao percebermos que qualquer abordagem seria ridícula, seguimos para uma lanchonete nas imediações da Avenida Nove de Julho. Era divertido bancar o vagabundo durante a tarde de um dia útil; um papel que eu já desempenhara antes, mas nunca com tantos recursos, dispondo de um chauffeur que me levaria onde quer que desejasse ir. Pedimos sanduíches, sucos e comemos na área externa da lanchonete. Não havia ninguém por perto. O sol estava brando e cristalino, e a direção para a qual soprava o vento afastava o cheiro de gordura e trazia um quase imperceptível perfume de árvores e flores no final da primavera. Após o lanche, o chauffeur sem nome disse que precisava ir embora. Enquanto nos despedíamos (estávamos todos na esquina), meu pai passou de carro e me viu. Estavam com ele minha mãe e a irmã. Creio que retornavam de alguma consulta médica e, ao me avistarem, gritaram e acenaram, não sei se bravos ou apenas surpreendidos. Tive medo, mas o veículo dobrou uma esquina e não retornou. Caminhamos rumo aos quarteirões da cidade velha, onde era possível jogar bilhar. Com o Pato às portas da falência, decidimos ir a um estabelecimento mais ao sul – este de reputação duvidosa. No trajeto vimos um homem e um iguana. O lagarto, como se fosse um pássaro monstruoso, repousava no ombro do seu dono, mas em dado momento saltou ao solo e, sempre muito veloz, correu até a pequena árvore que ficava diante da loja, escalando-a. Contemplamos a cena com asco, embora também tivéssemos o espírito calmo, donos de uma tranqüilidade de que observa um evento apenas porque este é curioso. No salão de bilhar não encontramos nada que fosse duvidoso ou ambíguo: vimos uma fileira de mesas e o sol, que entrava pela porta descida até a metade, pousando sobre algumas, o que ofuscava e feria os olhos. Nos cantos, homens feios conversavam com mulheres feias. Para minha vergonha, pois tinha a fama de ser o jogador mais hábil, perdi várias partidas na seqüência. Não podia terminar o ano daquela forma, humilhado, e, assim como Shane deixa para trás os planos de ser um bom homem apenas para não ser surrado diante do garoto que o admira, tentei sorrir com o canto da boca e anuncei que venceria todos os jogos restantes.

2 comentários:

avental disse...

A minha Avenida Nove de Julho que não conheço, onde tenho estado em momentos tão bons e onde nunca irei. A vida torna-se cada vez mais virtual e lembro-me do tio agonizante que queria morrer no mar, uma das suas personagens que me marcou para sempre, tal era a violência da sua humanidade em plena queda.

Paulo Bono disse...

bela tacada, Mississipi

abraço