segunda-feira, 5 de novembro de 2007

educação cinematográfica

Não sei se as musas existem. Eu, pelo menos, nunca tive uma. Há uma garota de rosto e corpo bonitos. Diante desta rapariga é possível pintar aquarelas, compor canções, odes, elegias, sonatas, romances; mas a verdade é que não sei o que isso significa. Sei que existe a beleza, e mais: sei que existe uma idéia – que também é um anseio – do que é a beleza. Quando um cérebro ou espírito criativo (ou que assim se julga) se vê perante tal espetáculo, é natural o sobressalto, o espanto, a ânsia de capturar e depois expulsar para fora de si tudo o que foi suscitado por tamanho esplendor. Mas essa beleza pode ser tanto encontrada no rosto de uma menina como também numa cadeira ou vaso sanitário. Basta ter o sopro.

Quanto a mim, nunca tive paciência para contemplar cadeiras e vasos sanitários. Tenho os meus gatos (muito charmosos), reconheço que filhotinhos de cachorro são um dos poucos acertos do divino, adoro algumas esquinas da cidade velha e – vá lá – gosto de árvores frondosas, tardes de chuva, poentes lentos macios incendiados. Mas nada disso me impediu de ter um cérebro ou espírito dos mais sanguíneos. A maior fonte de beleza ainda são as garotas; sejam as meninas da porta vizinha, sejam as ungidas por poeira de arco-íris, habitantes de um olimpo para o qual não nasci, e que, por esse motivo mesquinho, interessam-me menos.

É óbvio que há exceções. Um exemplo é Eva Green. Ao ver Os Sonhadores passei noites insones, quase sonâmbulo. Os cabelos castanhos; a pele insuportavelmente tangível e, no entanto, inalcançável; a placidez e a inocência (tão evanescente) do rosto; a boca vermelha, que às vezes se abre num esgar que é uma mistura de escárnio e lascívia e ternura – tudo isso me assombrou por um bom tempo.

A Doutora Cameron, da série House, foi outra que esteve perto de minhas entranhas, e não tanto por ser bonita, mas por sua mórbida e dolorosa indulgência em relação aos tipos mais desajustados (pois o meu gosto para mulheres, embora resvale o óbvio, ostenta matizes de morbidez e perversão). Marie Laforet, em O Sol Por Testemunha (e apenas em O Sol Por Testemunha) fluiu em meu sangue por um par de noites, façanha também conseguida por Catherine Spaak em Aquele Que Sabe Viver.

No entanto, a primeira garota olímpica a chamar a minha atenção foi Martina Hingis. Corria janeiro de 1999 e eu tentava repousar após dois anos de cursos pré-vestibulares. Na primeira quinzena do mês, fui ao mar, mas choveu todos os dias e quase não desfrutei da viagem. No final do dia, quando a chuva parava (e o ar ficava impregnado de cheiros confusos: tábuas podres, quase mofadas; a doçura da terra e das árvores encharcadas; a maresia salgada, fina, vagamente nostálgica, pois eu não descia ao mar há mais de cinco anos), eu saía com o pai para jogar sinuca num bar quase em ruínas, que ficava em frente ao cemitério da cidade, ou passava numa banca de jornais que apenas vendia livros imprestáveis. Por conta de tudo isso, já tinha lido o bastante (para as férias) quando, de volta à cidade, resolvi gastar a quinzena final de janeiro da maneira mais ociosa e solitária possível. No segundo ou terceiro dia de inércia, descobri, num canal da tevê paga, o Aberto da Austrália de Tênis. Logo em seguida descobri Hingis. Mais jovem do que eu. Um corpo delicado e pequeno (quase impúbere) para uma tenista; e os olhos verdes; e a pele muito branca e o olhar suplicante na direção da mãe (então a sua treinadora) após cada ponto perdido. Ela já era a número um do mundo. Para assistir à final, recusei um convite para sair, e depois, ao vê-la desfilando com o troféu – com um vestido vermelho incandescente, o rosto também afogueado, o fulgor dos olhos verdes, a pele rosada docemente marcada pelo sol nos ombros e no pescoço – apaixonei-me. Como se ela fosse uma menina da vizinhança, ou como se eu tivesse reais condições de ascender aos cumes da glória e da fama apenas para tê-la.

Seguiu o ano. Fui estudar cinema. Naquela época e naquele lugar de grunges tardios – quando todos os rapazolas sonhavam em foder Kim Deal – eu pensava, secretamente, na bela e eterna Martina. Passei a acompanhar sua carreira. Vi, com desespero, a trágica final em Rolland Garros, quando perdeu (um jogo ganho) de Steffi Graf, brigou com os juízes e, humilhada, saiu vaiada pelo público. Então veio a derrocada, a escassez de títulos, a ascenção das irmãs Williams, Lindsay Davenport, Jennifer Capriati e outras jogadores nada singelas. Após contusões e brigas com a mãe, Hingis interrompeu a carreira. Surgiram rumores de casos amorosos, um mais lamentável que o outro, e depois, quando as garotas bonitas voltaram a dominar o circuito, eu já tinha o coração morto para as beldades do olimpo.

Foi com esse ceticismo que vi o seu retorno às quadras no começo de 2006. Acompanhei as primeiras partidas após o regresso com a dúbia sensação de que aquela era e não era a Martina de outrora. Os olhos cintilavam como antes; o rosto ainda permanecia afogueado; e descobri no corpo, eu que me acostumara à singeleza de anos atrás, a glória ou pelo menos a insinuação de uma carnalidade perto de explodir. As vitórias não vieram, mas a verdade é que dela já não esperava qualquer triunfo, apenas um retorno digno e calmo: sem conquistas e também sem humilhações.

Mas agora, enquanto relembro, não sei se um regresso sem humilhações garante um fim digno e calmo. Pode ser que um vencedor, pelo simples fato de deixar de ganhar, torne-se um perdedor. Nesse caso, a angústia, o desgosto e a raiva podem ser ainda maiores. Hingis retornara e, com resultados apenas razoáveis, longe de realizar façanhas, conseguiu ficar entre as 20 melhores. No entanto, após cada eliminação na primeira rodada – ou derrota para jogadora nunca antes vista, ou desempenho tido como excelente por ter alcançando apenas as quartas-de-final – a minha memória cinematográfica foi aproximando Martina de outro olimpo, este em ruínas e habitado por perdedores (alguns charmosos, outros crônicos), prodígios nunca consumados e deuses caídos: figuras exploradas à exaustão pelo cinema norte-americano dos anos 40 e 50. Até pensei em cowboys que, após o esplendor na condição de assassinos ou ladrões de trens, definham em algum rancho nos ermos de Utah ou Missouri, em paz e à sombra da lenda criada. Melhor assim, pensava eu, do que a culpa – e depois o brutal retorno à violência – de William Munny; ou o périplo de Ethan Edwards pelas imensidões do Monument Valley, ele que, após a derrota do sul, recusa-se a voltar para casa e perde décadas buscando a sobrinha capturada pelos índios. Um homem que, após assassinar cada um destes índios, atira nos olhos dos cadáveres para impedir que a alma saia e suba.
Acontece que, conforme aprendi nestes mesmos filmes, estar distante (o tal rancho nos confins de Utah ou Missouri) não impede um último confronto com a existência que o perdedor (ou prodígio falso ou deus caído) tenta abandonar ou até manter. Pode-se dizer que esse olimpo subterrâneo é apenas temporário, daí a sua natureza purgatorial; apenas um lugar para se estar antes da morte, esquecimento, aceitação da derrota. E, lendo os jornais no decorrer da última semana, deparei-me com a notícia da aposentadoria de Martina Hingis, anunciada em razão de um exame de doping – realizado durante o último torneio de Wimbledon – ter revelado traços de cocaína. Li também que ela alega inocência e é possível que uma contra-prova contrarie o primeiro resultado. Ainda assim, não consigo imaginar desfecho mais melancólico para o seu precoce brilhantismo, e por conta disso também eu, no dia em que li a notícia, fiquei triste e pensativo. Sem saber o que virá agora, abanonei a comparação com os comboys desditosos e me fixei em outro filme sobre o fracasso: A Marca da Maldade (A Touch of Evil). Lembrei-me da frenética e corrupta cidade na fronteira com o México; da sensação de calor reverberando nas sombras noturnas; dos rostos suados; da revelação de que o personagem de Orson Welles (o mais poderoso policial da cidade) fizera a sua carreira adulterando e manipulando provas; e depois relembrei a sua queda, desespero e por fim a derrota final no outro lado da fronteira – uma cidade fantasmagórica, vazia, varrida por fortes ventos que traziam em si um cheiro do mar que nunca era visto, e ao longe (mas cada vez mais próximo) o som de uma pianola que tangia sem cessar uma áspera melodia, e o reencontro com Dietrich, a melancolia da banal conversa que vem a seguir (banalidade traída apenas quando a cartomante, com o rosto implacável, mira o homem gordo que tem diante de si e diz algo como: eu disse que você não deveria comer tantos doces), e depois a morte e corpo tombando sobre o mar que enfim é mostrado, tudo aos sons da pianola. Foi nesse cenário que enquadrei Hingis, ou melhor, foi esse cenário o pano de fundo dos meus pensamentos: eu melancólico, também um pouco derrotado, e a sensação de coração morto para o olimpo e as suas quases musas. No mais, canção, no mais­ – assim Camões encerrava, sabiamente, cantos de sua velhice.

6 comentários:

Paulo Bono disse...

as tardes de chuva, as raparigas e o puta texto de sempre.
incrível, não tenho musas.
grande abraço

evelyn disse...

Seu blog está ótimo, meu caro. Magnífico post!

mississipi disse...

Fala Paulo

é... gosto de tardes de chuva e de raparigas, então volta e meia elas aparecem aqui

mississipi disse...

Evelyn

É muito bom tê-la por aqui. E fico feliz que goste do que lê.

whisner disse...

engraçado ler este post seu. outro dia parte de um conto meu foi sobre duas musas. uma do filme "a primeira noite de um homem" e outra de "veludo azul". claro que a eva que vc cita também está muito bem, mas explícita demais.

mississipi disse...

Whisner

Acho que, no seu conto, você deve ter falado de Isabela Rosselini (a musa de Veludo Azul), com a sua bocona vermelha. Mas não sei quem seria a musa de a Primeira Noite de Umm Homem... há quem prefire a Senhora Robinson e há quem fique com a Senhorita Robinson, respectivamente, e agora cito de memória (posso errar feio), Anne Bancroft e Catherine Ross... sobre Eva Green, é, toda ela é bem hipnótica, fica difícil achar a palavra certa, a concisão.