quarta-feira, 31 de outubro de 2007

falso diário de viagem

1. O mais longe que estive foi ao oeste, e por poucas horas. Primeiro visitei uma igreja devastada por ventanias de terra. Depois fui conhecer o comércio local. Uma caminhada por ruas lamacentas e apinhadas de bancas que vendiam artesanatos, manufaturados ou produtos eletrônicos falsificados. No entanto, o homem que assumira a função de guia nos alertou que era perda de tempo negociar com os camponeses, e ordenou que o condutor do ônibus nos levasse a um mall erguido apenas para abastecer os viajantes. Essa viagem durou pouco mais de duas horas. Às margens da estrada, observei campos cobertos por uma vegetação densa e anônima – apenas árvores e bananeiras aqui e ali. Então nos deparamos com uma construção erguida no meio desse princípio de floresta: um prédio enorme, pesado, quadrado, também sujo por sucessivas ventanias de terra, e, como descobrimos depois, abandonado. O estacionamento ao redor, que poderia abrigar centenas de veículos, não apresentava nem sequer um carro. Nos limites do terreno, um posto policial invadido pelo mato. A solução foi cruzar a fronteira de volta, mas a verdade é que em nenhum momento eu me descobri um estrangeiro. Talvez pelo fato de terem sido em português as poucas palavras trocadas com os nativos.

2. Se a condição do estrangeiro é o encontro com uma língua que não é a materna, então me descobri fora daqui apenas uma vez, e em meu país. Não me lembro qual estado eu cruzava. A viagem iniciara-se logo cedo e já atravessava a tarde quando o ônibus parou num desses restaurantes à beira da estrada. Como naquela manhã em que estive ao oeste, não havia sol; apenas uma claridade escura, densa e sufocante. O restaurante – uma construção baixa, vidraças sujas de terra – estava cercado por morros altos e áridos, de um marrom escarlate. Ao entrar, encontrei o estabelecimento imerso na penumbra e na monotonia. Junto a uma das janelas, um grupo de homens comia. Pairava um cheiro de carne crua e velha, como se eu acabasse de entrar num açougue às vésperas da falência, idéia que pode ter sido sugerida pelas paredes de encardidos azulejos brancos. Pedi uma soda. Alguns ocupantes do ônibus decidiram almoçar, outros beberam café ou aguardente. Eu já saía pela porta do restaurante quando o rapaz atrás do balcão perguntou se eu vinha do sul. Ao sul do norte e ao norte do sul, pensei em responder, mas essa impossibilidade geográfica me soou exagerada, fruto de uma concepção ainda medieval do espaço. Apenas concordei que vinha de um ponto ao sul, ao que o rapazote emendou percebi pela sua palavras.
Saí do restaurante e, lá fora, observando a paisagem, a princípio fiquei orgulhoso da minha maneira de pronunciar as vogais e as consoantes, mas logo me vi encapsulado dentro de uma estranha nudez, talvez pudor. Espantava-me saber que os sons que saíam da minha boca fossem uma extensão física do meu corpo e da minha origem – algo tão evidente, tão irrevolgamente meu como uma cicatriz ou marca de nascença. Até me lembrei de um grupo de espanhóis com quem, dias atrás, dividira uma embarcação. Não conversamos: eles riram entre os deles, eu ri entre os meus, mas em nenhum momento tirei os olhos da espanhola mais jovem; do seu corpo tão igual ao das miúdas que estudavam comigo mas também distinto de qualquer corpo encontrado ou tido por mim. Um corpo diferente porque pensa em outro idioma, porque batizado por outra língua. E se falo assim, a minha carne é assim, o meu sangue é assim. E é como se fosse diferente o sangue e a carne das pessoas que falam diferente; pois os seus corpos parecem ter sido curtidos sob uma luz diversa, não uma uma luz mais bela, mais plena, mais forte, apenas uma luz diversa e distante e (para mim) impossível; e muitas vezes percebo esse impulso animal de querer misturar o meu sangue a um outro apenas porque não é o meu, embora eu também perceba a possibilidade de odiar um homem apenas porque ele nasceu sob outra luz. Não há unidade, não há nem sequer um eixo – podia ter pensado enquanto olhava na direção dos montes encarnados, os olhos feridos pela escura claridade.

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