sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Conto: Prelúdio de Um Ano Bom

Nos dois anos durante os quais fui estiagiário do fórum, as únicas tardes bonitas foram as de chuva, sobretudo no primeiro ano, quando ainda estava na secretaria. A mesa ocupada por mim era a pior de todas – ficava bem na frente do balcão dos advogados, de modo que eu era obrigado a atender qualquer um que aparecesse, função que eu exercia com timidez. O consolo é que, nas tardes de pouco movimento, bastava girar sobre o eixo da cadeira para me deparar com uma janela que se estendia por quase toda a parede, e esta parede era um mirante para a praça que ficava em frente ao fórum, um lugar simples, com apenas algumas árvores, um chafariz em ruínas, um parque para crianças igualmente desolado, e arbustos floridos com pétalas pequenas das mais diversas cores. Nas tardes de chuva, quando o som calmo e abafado da água deslizava sobre as vidraças – e quando a luz vespertina escoava ao longe, acima das árvores, na distância do céu de nuvens brancas – o tédio do trabalho parecia remido pela visão daquilo que, às vezes, me parecia ser um descomunal jardim de inverno. E muitas vezes nem era preciso contemplar: bastava ouvir o frêmito da água, bastava respirar o cheiro de terra encharcada que, não raro, conseguia esgueirar-se repartição adentro.

No segundo ano, durante a época de chuvas, eu já estava no gabinete. Uma sala pequena. Além de mim, contava com apenas dois servidores e, à medida que entardecia, não era raro eu ficar sozinho durante longos minutos. O gabinete dava para as salas dos juízes e também para a sala de audiências. Os juízes nunca apareciam, mas era comum, no final do expediente, escutar uma mulher trabalhando na sala de audiências. Ela vinha da secretaria com uma pilha de processos, sentava-se diante do computador e começava as preparações para o dia seguinte. Era uma mulher bonita, magra, com pouco mais de trinta anos, de cabelos escuros, pele clara, olhos muito negros e fundos, vestida com aquela sobriedade vulgar que imperava entre as senhoras que trabalhavam no prédio – enfim, uma mulher cuja carne exalava um perfume doce e cujo hálito, até o final do dia, traía vestígios do almoço feito às pressas em algum restaurante nas imediações do fórum. Éramos corteses e, eventualmente, até simpáticos um com o outro, mas não posso dizer que a sua presença, na sala ao lado, suavizava as horas finais do expediente, pelo contrário; em muitas ocasiões era como ter a carne e o sangue e a órbita dos olhos esmagados pela peso de uma avidez demoníaca, quase insuportável. O consolo, tal como já fora nos tempos da secretaria, eram as tardes de chuva; o inegostável frêmito; a umidade que aos poucos desprendia-se das paredes e até alterava a percepção das horas. Então eu caminhava até a janela e observava a paisagem, que não era mais a da praça que, sob as sombras de muitos crepúsculos, me parecera inundada, submersa na água que caía em torrentes: agora contemplava um estacionamento, a imobilidade da sua rotina, e, ao longe, a luz em fuga, de uma opacidade que às vezes quase assumia um brilho dourado.

Numa tarde de sexta, não quis voltar para casa. No caminho até o carro, cruzei a praça. Chovera até minutos atrás e agora, encrespado ao anoitecer, descia um resto de sol. As árvores altas – curvadas sobre a abandono do chafariz e do parque infantil cujos brinquedos recendiam a ferrugem – transmitiam a idéia de um abóbada também arruinada, mas dentro da qual havia paz e silêncio.

Liguei o carro e tomei a direção do Wall Mart que ficava a poucos minutos do fórum. Passei pela entrada principal e, ao notar a enorme quantidade de veículos no estacionamento, tomei um desvio – contornando o parque de diversões que fora erguido nos limites do terreno; descendo um atalho que corria paralelo ao fundos de um hotel chamando Sleep In; passando ao largo de um terreno baldio que se estendia até a rodovia que levava para a capital (era o começo da noite e eu podia ver, na estrada, as luzes vermelhas nas traseiras dos veículos que iam embora e, no meio do terreno baldio, um quadrado de luzes amarelas assinalava um heliporto que talvez nunca tenha sido usado); por fim chegando a uma parte pouco conhecida do estacionamento, com muitas vagas vazias.

A doçura de antes dissipara-se, e a hipocondria que a provocara também estava fraca, embora nada fosse capaz de aniquilá-la por completo e, pior, quase tudo a instigava, quase tudo a alimentava. Os ventos finos e cortantes, por exemplo, tinham a função de trazer à tona a exaustão física, um mal estar na carne do rosto. Do cansaço surgia a idéia de abandono irredimível e inesgotável, um quase anseio de morrer ou de, pelo menos, não pertencer a uma realidade física; não ser um corpo que necessita de cuidados e que levanta apetites o tempo todo; um corpo que morre porque tem que morrer mas que, antes, precisa ser mantido saudável, limpo, fértil, puro, desejável, belo; um corpo que, não raras vezes, constitui um fardo pesado demais. Não mais do que isso. Um fardo.

Tinha estacionado o carro na parte mais baixa do conglomerado de lojas, em frente a um lugar que vendia produtos para animais e cuja fachada exibia, num néon berrante (e esta luz refletia-se nas poças que tinham se formado durante as chuvas da tarde e que ainda agora tremeluziam, devido à garoa que voltara a cair), a imagem de um cão risonho. Enquanto caminhava até o mall, às vezes olhava para a rodovia e mais além, para os campos que mesclavam-se às trevas noturnas. Esta solidão tão mentirosa – pois era preciso um grande esforço para ignorar os rugidos que vinham do monumental dinossauro do parque de diversões, e o rumor dos carros, e aquele murmúrio que era a soma das centenas de vozes e corpos humanos que, como uma torrente, moviam-se nos corredores acima de mim – davam um ar mais solene, se é que isso pode ser dito a respeito de qualquer emoção humana, à tristeza e ao cansaço. Às vezes era possível distinguir; ou melhor, às vezes era possível imaginar, no ar entrecortado de ruídos, os acordes de alguma canção bonita, ou a voz e o riso de uma garota de quem um dia gostamos muito, ou até versos que, embora nunca declamados, ganham sonoridade e corpo na memória. Às vezes Kávafis, ou Eliot, ou Bandeira, ou Eugênio de Andrade, ou Rexroth.

A idéia de solidão aumentou enquanto subia as escadas rolantes e olhava, através de uma opaca vidraça, dezenas de bicicletas e esteiras ergométricas, todas vazias, dispostas no interior de uma academia ainda inacabada. Quando alcancei os corredores, o cansaço desapareceu, e, ao notar raparigas bonitas aqui e ali, voltou a animação. Algumas caminhavam solitárias; traziam sacolas de lojas caras e paravam diante das vitrines, com uma expressão ora vaga, ora introspectiva, arrumavam o cabelo que lhes caía pelo rosto, e então seguiam com um passo vagaroso, quase indolente, quase sonâmbulo. Sabia que, aos olhos dessas meninas, eu era não passava de um arremedo de bárbaro – trajava calça e camisa que, apesar de boas para o trabalho no fórum, nem de longe eram sinais de prosperidade. E em meu rosto devia haver (talvez ainda haja) qualquer expressão de desvario, uma excitação nervosa ou uma timidez que resultavam do constante sentimento de inadequação. Portanto sempre achei sedutora essa autonomia, essa solidão quase aristocrática de algumas mulheres diante das vitrines das lojas mais elegantes. Eu as via com seus olhos glaucos, e cabelos loiros ou de um castanho que sob o sol fica vermelho ou cor de mel, e pele nívea, e nariz fino. Todas serão erva, dizia o meu instinto mais terrível, mas vinha outro instinto, este mais calhorda, e falava da necessidade de se deitar sobre a erva mais bonita, a relva dos píncaros, onde a luz parece imorredoura e onde adejam borboletas azuis. E se depois quiserem arrancar a cabeça de Julien Sorel, tanto melhor.

Planejara ir à livraria e depois assistir a algum filme. Na livraria vi o conhecido rosto de uma garota que fora minha colega nos tempos em que pretendi estudar cinema. Eu a chamei e começamos a conversar. Há anos não a via e, além de não saber o que esperar, ainda existia em mim aquela sensação de ter sido um traidor da causa artística e não apenas isso: fora eu o único a abandonar aquela família onde todos almejavam aprender sobre Murnau e Resnais e Wenders; o único a abandonar aquela universidade encravada no interior de um bosque de eucaliptos; o campus da, para mim, sempre melancólica faculdade de cinema – um lugar que, a cada palavra trocada com a antiga colega, ergueu-se da memória: lembrei-me dos crepúsculos, dos dolorosos ocasos que pareciam pertencer a outro continente, sobretudo na hora em que o gelado vento alcançava a névoa que subia do lago, toldando o céu e as últimas horas do dia. Então era até possível acreditar que, nos alojamentos, vivesse uma linda miúda de nome Dawn ou Aube, e, durante as noites de frio intenso, era quase real a sensação de caminhar pelos corredores de um castelo perdido na Floresta Negra e que antes abrigara Rilke e as suas elegias. Mas não há névoa, não há bosque de eucaliptos que cesse a algazarra das cigarras em novembro e dezembro, e quando isso acontecia – quando a luz descia límpida e, mais límpida ainda, deslizava sobre as águas do açude – despertávamos para o nosso país e muitas vezes era como despertar para a própria mortalidade, seja da carne, seja do espírito. O lago rebrilhava e, no entanto, era como mirar uma adiada sepultura.

Ela tinha os olhos negros. Os cabelos, também escuros, eram revoltos, crespos como os de uma judia. O corpo, pequeno e esquálido, transmitia uma idéia de doença, de desespero íntimo. Por mais que olhasse, não podia acreditar – nem sequer por um segundo – que a sua pele recendesse a sol; que os seus instintos, libertos, fossem a vitória da carnalidade; como se o corpo há muito tivesse desistido de ser um corpo.

Mas podia ser que tais impressões fossem resultado das recordações que eu tinha dela. Lembrava-me, por exemplo, de uma noite em que, involuriamente, eu fora espectador de sua tristeza e ruína. Nessa noite, eu tinha ido embora mais cedo da aula para assistir a um importante jogo de futebol. Conseguira carona com Ezequiel, um outro colega de classe, um sujeito que, na universidade, era tão deslocado quanto eu. Justo na hora em que entrávamos no carro ela apareceu, também à procura de uma boléia. E começou a chorar quando o carro estacionou diante do prédio onde vivia. Falava da depressão, de obsessões amorosas, dos medicamentos, de sua completa disfuncionalidade, de não conseguir acordar e comer e estudar e trepar, e então Deus quis salvá-la. Deus começou a falar pela boca de Ezequiel, e – quando ele quer salvar alguém, quando quer que as suas palavras saiam da boca de um dos seus servos – as palavras são excessivas para abrir ou pelo menos anestesiar (pela exaustão) o coração estiolado. O resultado disso é que a conversa durou horas. Deus existe e é misericordioso; Deus ou não existe ou é a implacabilidade da morte e o fracasso de tudo o que é humano; o suicida é o mais orgulhoso dos homens; não há ato que demande mais humildade que pôr fim a própria vida; a fé salva; a crença torna o homem indigno: enfim, estes foram apenas alguns dos antagonismos que pontuaram aquela conversa sem lágrimas. Apenas raiva de um lado, e, do outro, a lógica sagrada e terna.

Apesar de não ter tomado parte do diálogo, a partir daquela noite nos tornamos íntimos. Eu chegava na segunda e ela perguntava como fora o final de semana; eu falava dos lugares a que tinha ido e às vezes até aludia a alguma rapariga e depois pedia conselhos; ela ria das minhas confusões – uma risada bonita, que causava assombro na medida em que parecia alheia àquele esquálido e vulnerável e desesperado amontoado de carne e ossos – e o que dizia não era diferente do que outras meninas me diriam.

Contudo, não demorou e logo o riso dela perdeu aquela aura sublime que o havia consagrado. Agora este mesmo riso (ainda sonoro, ainda bonito) surgia como um esforço, um gesto de mendicância e, após poucas semanas, tudo nela revelou-se exatamente isso: mendicância. Lembro-me de uma noite em que, ao chegar a uma festa, ela me abraçou. Perceber os contornos de seu corpo contra o meu foi agradável: tinha os seios bem salientes sob o tecido da blusa e a rigidez da carne guardava vestígios de uma idade pubescente. No entanto, mais uma vez fora uma mentirosa primeira impressão: notei – à medida que o abraço demorava-se a ponto de se tornar sufocante – que esta rigidez não era nada mais do que um sinal de crispação: o ódio da carne pela própria carne e o asco do corpo pelo próprio corpo. E tudo nela, todas as suas palpitações e tremores pareciam obedecer a um ritmo secreto, como se ela tivesse dois corações. O primeiro igual a todos, impulsionando o sangue por todo o organismo – mas além desse coração parecia haver um outro, pulsando nas sombras do primeiro, e que dava fluxo a uma ânsia cada vez mais alucinada de acabar com tudo. Era este coração secreto que nutria o seu corpo e, se isso acontecia, também era natural concluir que ela fosse dúplice em todos os aspectos. Percebi isso numa tarde em que dormia ao meu lado. Apesar do semblante pacífico e da vulnerabilidade e desmaiada lascívia daquela corpo aberto para mim, havia algo mais, como se uma segunda epiderme recobrisse a primeira, e a mesma impressão tive ao mirar os cabelos, o rosto, a boca, os ombros, os contornos dos seios: tudo parecia germinar a tragédia, toda a carne parecia crispada em virtude de uma condenação prematura e inevitável. Em outras palavras: ela era um corpo, e este corpo cobiçava como qualquer outro, a diferença é que tinha a consciência do fracasso do desejo e de qualquer outro anseio humano. Então como compreender a mendicância? Como compreender que esse corpo continuasse se oferecendo? E como possuir e fecundar e gozar de uma carne que não era mais do que a desolada e fantasmagórica voz da terra calcinada?

No mês seguinte abandonei a universidade, uma decisão tomada no curso de uma madrugada de insônia, enquanto ela dormia ao meu lado. Não é raro a mendicância ter, como paga, a covardia. Foi um modo de conter os meus instintos mais perversos; de escapar das pulsões sádicas que me inspiravam os mergulhos naquela pele dolorosa e viciante; naquele corpo que se abria, que se entregava até o aniquilamento, e que encontrava paz, calma e até disciplina na agonia física; um corpo que, febril, era raiva e que, ao esfriar, era a antecipação da morte, a esterilidade de tudo, a impotência; e madrugada após madrugada a sensação da carne (feminina, sonâmbula) dormindo ao meu lado: a respiração pesada, o hálito quente, doce e mórbido que dela se desprendia; e em mim também a raiva, crescente, a raiva como naquele poema de Dylan Thomas, a raiva contra a luz que se quebra, a raiva por possuir um corpo que, desperto, tudo o que fazia era encolher-se de medo. Não consigo comer, não consigo estudar, não consigo trepar. Era o que ela gostava de dizer, e após um tempo percebi que tinha razão: não trepávamos, não havia entre nós qualquer foda, qualquer coisa que remetesse ao amor ou à sua tentativa, ainda que falhada. O amor não podia ser tamanha carnificina.

Depois disso, Aurora, em duas ou três ocasiões, veio até a minha cidade – a fala desesperada, o corpo mais seco do que nunca, os olhos cadavéricos, o rosto sulcado, os cabelos de judia, mas bastava abraçá-la, bastava ter o corpo dela contra o meu para se assombrar com as possibilidades oferecidas e, logo em seguida, negadas. Tudo era triste, inútil, estéril. Até que um dia ela deixou de vir. Agora, segundo os relatos que me chegavam, o centro de suas obsessões era Ezequiel. Uma relação também raivosa, miserável, falhada, e que veio a deixar um filho abortado. Ao saber disso, o que primeiro me espantou foi existir fertilidade em sua carne. Mas poderia ter sido um milagre. Talvez Deus – que antes fora a voz de Ezequiel – tivesse chegado ao cúmulo de fecundar aquele corpo que expulsava de si qualquer início de vida.

Agora ela vai dar cabo de tudo, pensei comigo mesmo após estas primeiras ponderações, sem saber até que ponto a criança não nascida aumentara a sua tristeza. Ezequiel também tinha a abadonado e, ciente disso, até pensei em voltar para o bosque dos eucaliptos. Considerava – como um casmurro às avessas – que a criança pudesse ser minha e até encontrava evidências que confirmassem tais suspeitas. No entanto, ainda um arremedo de casmurro, toquei os estudos adiante; aprendi as leis numa cidade que nada tinha de Coimbra.

Isso não quer dizer que, nos anos seguintes, eu não tenha retornado. A primeira dessas visitas ocorreu durante um mês de dezembro. Recordo que, naquelas semanas, chovia muito todos os dias. Foi a primeira vez em que, durante a viagem, peguei fortes temporais durante o trajeto. Acostumara-me a olhar pela janela do ônibus e contemplar, até onde a vista alcançava, as plantações de café, cana de açucar, e também os sítios nunca cultivados. Mas naquela viagem o cenário estava mudado. O céu parecia baixo e a vastidão dos caminhos perdia-se numa monotonia manchada de cinza. Quando cheguei à universidade, contudo, veio um resto de sol. Feixes de luz clara desciam por entre os eucaliptos; a luz mais límpida e fulgurante que já havia encontrado; e a mais crepuscular também; morrendo depressa pois o vozerio das cigarras era onipresente e porque o calor começava a se tornar insalubre, com um odor de água morta que subia do lago. Os velhos colegas foram amáveis. Quando a vi e a chamei, houve novo abraço e por um instante foi bom – ela ainda tinha os seios salientes sob o tecido da blusa, a rigidez da carne jovem. Então percebi que a mendicância e a hipocondria daquele corpo haviam morrido para mim e talvez para todos. Cheguei a ter a impressão de que ela e o seu corpo tinham existido apenas para isso, apenas para ter algo não nascido dentro de si e o que vinha agora era a queda solitária. No momento em que o abraço terminou, surgiu em mim algo que era uma mistura de raiva e ternura. Algo que poderia ser a voz da carne; o seu apelo ancestral; o falhado instinto da carne em existir em outra carne.


Agora ela me perguntava que livro eu tinha nas mãos. Respondi que não era nada especial e perguntei o que fazia na cidade. Venho para cá duas vezes por semana, respondeu para acrescentar logo em seguida: os terapeutas daqui são melhores – cobram mais caro. Sem dizer nada, mirei o seu rosto, e notei que já não era apenas a depressão que o sulcava, escavando cada vez mais fundo: a erosão dos anos trazia marcas e sombras, e o curioso é que aquele começo de velhice chegava a atenuar o desespero com um ar de distinção, de sobriedade. Quando vierem os cabelos brancos e a falência total da carne, aí ela será uma velha triste como tantas outras – pensei – mas isso pode demorar. Ela me disse que ainda estudava em eucaliptos, cursava o último ano, e que eu acertara ao fugir daquilo tudo. Quis consolá-la com um pouco de melancolia. Respondi que na maioria das vezes sentia-me solitário, e que naquela noite nem pretendia comprar um livro: apenas matava o tempo antes de ir ao cinema, e seria bom ter a companhia dela. Ela aceitou, mas a verdade é que, durante a exibição do filme, tive os olhos fixos na tela o tempo todo. Não quis beijá-la porque o seu corpo já não me pedia nada. No entanto, inúmeras vezes durante a projeção, lembrei-me das madrugadas em que dormimos lado a lado. Lembrei-me do peso da sua sua respiração; do halo feminino, ora insuportavelmente triste, ora excessivamente lascivo, que se irradiava de sua pele; da carne que se crispava ao menor toque. Ao fim da sessão, abraçamo-nos, e percebi os contornos dos seios, mas a carne já não estava tesa, rígida, e uma última vez o casmurro às avessas que existia em mim revirou velhas suspeitas. Chovia fino enquanto caminhei de volta ao carro. Poças tinham se formado aqui e ali, refletindo o néon que descia das fachadas das lojas, enquanto ao longe a rodovia vazia e escura confundia-se com as trevas do terreno baldio. Segundo relatos, ela afogou-se no açude de eucaliptos algumas semanas depois, no final de fevereiro. Ouvi a notícia com pesar e até espanto, mas isso não impediu aquele ano de ser um dos mais gloriosos.

4 comentários:

d. chiaretti disse...

O sleep in existe? A descrição parece com um de minha cidade natal.

mississipi disse...

o sleep in existe sim... mas nunca me hospedei nele, e ainda vivo na minha cidade natal.

mas eu sei qual é a sua cidade de origem? a Califórnia brasileira?

d. chiaretti disse...

exatamente. e esse o sleep in em questão?

mississipi disse...

eu tinha em mente o sleep in daqui quando fiz aquela descrição, achei aquela região interesante o bastante para colocar no que escrevia, e como gosto do nome "sleep in" (parece um desses hotéis vagabundos de beira de estrada, anônimos, à La Bates Hotel) resolvi manter o nome verdadeiro no conto... mas o fato é que o sleep in verdadeiro é tão mais chique que um hotel de quinta