quarta-feira, 3 de outubro de 2007

os nomes dos perdedores

Da infância, lembro-me que, nas noites de quarta ou quinta-feira, uma emissora de menor audiência exibia jogos de futebol. Nas noites geladas ou chuvosas, quanta melancolia existia nisso: nada parecia estar em jogo e as partidas, disputadas em campos enlameados e sob neblina, atraíam pouco público – era como se não existissem troféus, a possibilidade de ganhar, e os grandes jogadores não passavam mais de fantasmas mortos há vinte ou trinta anos.

A lição de casa era feita na mesa de mármore da cozinha, e muitas vezes eu acabava a tempo de ir na rua. Durante o calor, subiam meninos e meninas de outras vizinhanças e era divertido, mas, nas noites geladas de maio e abril, poucos garotos apareciam para brincar. Numa das casas no final do quarteirão, existia uma velha agonizante e era comum ela receber a visita da filha e do neto. O menino chamava-se Lucas e por um tempo fomos amigos (a mãe dele não gostava dos outros garotos do quarteirão e eu era o único que podia brincar no quintal da velha, debaixo da parreira, e durante o frio de outono o chão era coberto por folhas): disputávamos figurinhas de jogadores e conversávamos sobre futebol. Resultado disso é que acabei por decorar os jogos de quase todas as copas do mundo. Durante uma aula de história a professora disse ninguém se lembra dos nomes dos perdedores. Quem sabe, por exemplo, o segundo lugar da copa de 54? Eu levantei a mão e disse Hungria. Houve espanto e a professora, contrariada por ter sido desmentida em sua tese, perguntou-me sobre os perdedores de inúmeros campeonatos mundiais, e não errei nem sequer uma resposta: Holanda, Brasil, Suécia, Chile, Argentina, Tchecoslováquia.

Teve uma noite de domingo que saí para a rua após o jantar. Estava gelado e eu tinha, como companhia, um rapazote com o mesmo nome que eu e outros dois meninos cujos nomes me esqueci. Sentamo-nos nos degraus do bar da esquina e iniciamos um violento jogo. Com um pedaço de pedra vermelha na mão, um de nós desenhava na calçada enquanto os outros precisavam adivinhar o que era desenhado. O acertador ganhava o direito de perseguir os demais e distribuir reiadas em quem encontrasse pela frente, isso até o menino desenhista gritar uma palavra chave – a partir de então os meninos fugitivos podiam espancar o outro menino até este alcançar um posto seguro. Isso nos divertiu por um tempo, mas o tédio retornou. Então alguém falou de uma rapariga que fodia com qualquer um que a solicitasse. Um outro alguém sugeriu chamá-la e todos pareciam estar animados, até eu, embora tudo aquilo que me parecesse absurdo e doloroso: absurdo não apenas pela ausência de lógica no pensamento cunhado por nós – mas sobretudo pelo fato do sexo, ou a possibilidade do sexo, irromper com tanta violência e arbitrariedade. Então eu, que tinha saído de casa após o jantar apenas para conversar com os amigos, iria me deparar com o horror de estar nu (e a súbita, a horrível consciência do corpo magro e precário) diante de uma miúda também nua? Além disso, eu deveria extrair – de mim mesmo, do terror de meu corpo pubescente – um vigor, um apetite que ainda não gritava, que ainda não encerrava qualquer sentido ou agonia.
Ainda assim, segui os rapazes. Acabamos, em silêncio, diante de uma casa pobre (não me esqueço do muro esburacado, da mangueira no quintal e, ao fundo, de uma luz amarela e esmaecida). Um dos meninos pediu que os outros se afastassem, bateu palmas e conversou com um vulto. Depois veio até nós e disse agora é só esperar na esquina do bar. Nessa hora duvidei que alguma coisa aconteceria e fiquei espantado com a tristeza que apareceu em mim. Ainda me lembro do caminho de volta – as luzes fracas, a quietude do domingo, a noite gelada, os ventos finos e cortantes, o lento agitar dos galhos nas árvores, os vôos rasantes dos morcegos. Ficamos sentados nos degraus do bar por uma hora ou mais, sem falar nada, aturdidos pelo peso e depois pelo vazio de uma espera triste e inútil.

2 comentários:

Paulo Bono disse...

muito foda, mississipi.

MM disse...

Muito bom! Parabéns!