domingo, 7 de outubro de 2007

tarde de sábado - apontamentos

1. No salão de bilhar da Rua Santiago, nunca entendo o que jogam o sujeito atrás do balcão e o seu habitual oponente. Cada um pega um punhado de cartas e, sem nenhum critério aparente, descartam algumas. Quase não conversam.

2. A moça que não sei se é filha ou amante do dono do lugar parece mais feia do que há dois meses. Quando eu e Cartago chegamos, ela comia de um prato de alumínio, olhos atentos na tevê da parede. Não quisemos incomodá-la e escolhemos uma mesa isolada. Após terminar o almoço, ela sumiu por uma das portas que dava para os fundos do bar. Reapareceu minutos depois e pude vê-la melhor. Calçava uma sandália de couro, vestia uma saia puída que mal chegava aos joelhos e uma incomum blusa rendada que parecia ter sido tirada de uma boneca. O rosto, de uma lividez ungida pelo suor, cintilava. Não devolveu os nossos olhares e voltou a sentar-se na cadeira antes ocupada. A essa altura, o jogo de cartas tinha terminado e o seu pai ou amante foi até ela e passou a acariciar a sua fronte, os cabelos negros e gordurosos. Cartago falava da esposa. De um programa de computador que, ao analisar as opções da bolsa de valores, escolhe as ações que devem ser compradas e as que devem ser vendidas. O vento – ou melhor, a aridez do ar está repleta de sol e de terra que sobe das calçadas e desce dos telhados. Lembro a mim mesmo que a avó foi sepultada numa tarde como essa.

3. Passamos em frente a um curso preparatório para o vestibular. É dia de simulado e a calçada estava tomada por raparigas de dezessete e dezoito anos. Cartago afirmou que, há exatos dez anos, estávamos em situação idêntica. Em silêncio, evoquei os dias durante os quais ainda podíamos caminhar pela cidade nas tardes de sexta. O último desses passeios foi em maio do ano passado: eu vivia as primeiras semanas do namoro e tinha o corpo exausto e, no entanto, desperto como nunca antes – uma sensação de quase aniquilamento e quase delírio por ainda estar recebendo o início do amor. Soprava um forte vento enquanto, diante da escola onde havíamos estudado, metade oculto nas sombras, contemplávamos a saída dos alunos.

4. No final da tarde, quando já estávamos de volta ao salão de bilhar, lembrei-me da outra avó, a que ainda não morreu. Não sei o que conduziu o meu pensamento até ela, talvez a visão da fachada de uma clínica geríatrica no outro lado da rua. Sobre avó morta escrevi inúmeras páginas: uma minuciosa narração do colapso que a matou afogada pelo próprio sangue, a descrição da sala onde ocorreu o velório, o sepultamento, os dias que se seguiram, o sol, a dor. Diante do cadáver da avó morta, eu tive a absurda sensação de estar diante de algo que já tinha deixado de existir.
Mas a outra avó, a que ainda não morreu, parece representar uma situação oposta. Ela não reconhece ninguém, a memória deixou de existir, a carne fica mais macilenta a cada dia, basta um vento para abrir feridas nas pernas e nos braços. Em outras palavras: ela é a ausência – ela existe, mas é a existência como mancha, borrão cada vez mais pálido, transparência. Quando a colocamos sentada no sofá, é como se não estivesse lá, e tenho a certeza de que, se fosse um cadáver, todos reparariam. É como se um corpo morto representasse a derradeira concretude não apenas do que deixou de existir, mas também do que existiu – ainda que em cores pálidas, desbotadas, degradantes – durante tanto tempo. Quero acreditar que, quando a avó ainda viva morrer, e quando todos nós estivermos diante de seu cadáver, ela deixará de ser ausência. Ela voltará enquanto coisa viva que não existe mais e trará o espanto, talvez a dor, talvez a memória, talvez até a literatura e então será possível uma detalhada narração de seus últimos anos e agonia. Poderá alguém vir e dizer o quanto era comovente a demência, o corpo abandonado no sofá e outras imagens poderão ser evocadas. Talvez o canteiro de rosas e ervas cultivados por ela e o cheiro de hortelã nas tardes de calor. A concretude da morte enquanto madeleine.

Um comentário:

Paulo Bono disse...

sinto falta da minha vó.
minha outra vó vai comprar os remédios dela sozinha.

grande abraço, mississipe