quarta-feira, 10 de outubro de 2007

idílio

A morte do corpo, e apenas do corpo, é o tema central (talvez o único tema) de “Homem Comum” (“Everyman”), de Philip Roth. Portanto, nada mais natural que a personagem central não ter um nome, pois a biografia narrada não é a de um homem; é a história de um corpo e a sua degradação, passo a passo, da hérnia operada na infância até os colapsos da velhice. A biografia de um corpo que, como quase todos os outros, é saudável no começo. No entanto ele vai se estragar – agoniza, apodrece e morre porque tem que agonizar, apodrecer e morrer: não importam as dietas seguidas, os tratamentos feitos ao pé da letra, o diligente cuidado durante anos, décadas. Ao cabo de tudo virá a precariedade dos órgãos que começam a falhar, as doenças, as cirurgias, as pontes de safena, os tubos de respiração artificial, as quimioterapias, até que é alterada a percepção do tempo e talvez não seja possível morrer em paz. Talvez a única alegria possível e verdadeira seja a de um corpo saudável, e, no fim, a certeza de ter sido um corpo bom e pleno não é mais do que a amarga e senil evocação de um paraíso distante.

Ao comprar o livro, tinha a idéia de, após a leitura, passá-lo ao pai, para que ele enfim conhecesse a prosa de Roth. Mas, a cada página lida, lembrava-me de suas últimas crises de hipertensão (numa delas ele respirava pesado no banco do passageiro, podia deixar de existir a qualquer momento), de umas sombras surgidas ao redor dos olhos, da corcunda cada vez mais proeminente, da tocante melancolia que tenho percebido aflorar durante algumas risadas. O resultado de tais pensamentos é que, agora, não tenho a menor vontade de lhe passar o livro. Todos morrem e todos sabem que vão morrer, mas saber da morte é diferente de ser a morte. Talvez seja de um sadismo violento colocar o livro na cabeceira da sua cama, mas é possível que ele passe incólume pela leitura, é possível que o medo seja apenas meu, um medo que é um resto de infância e também uma das primeiras antecipações da morte: se existe, no passado, a lembrança de um paraíso, talvez a primeira sensação desse paraíso seja a certeza de que são eternos aqueles que amamos, e a segunda – e a mais permanente sensação – é a cega crença na própria imortalidade.

Aliás, não é de se estranhar que, durante a leitura, eu tenha revirado a memória para resgatar imagens que me provassem a glória de ainda habitar um corpo bom, e o que me assaltou foi a lembrança de umas dessas noites em que a alegria surge de um cenário de aparente monotonia. Foi durante o primeiro ano do namoro. Naqueles meses, nas noites de quarta, eu a levava para as suas aulas de caratê. Enquanto ela treinava, eu aproveitava para caminhar pela vizinhança. Gostava disso porque era uma parte da cidade que não conhecia bem, mas aos poucos surgiram pontos de referência, como a fachada de um supermercado que, sob a luz branca irradiada pelos holofotes do estacionamento, lembrava-me muito uma tela de Hopper. Nessa noite, todavia, não fui muito longe. Começou a chover muito forte e precisei voltar para o carro e lá esperar durante quase uma hora. Às vezes olhava na direção da academia e a via, através da vidraça, durante o incompleto movimento de um golpe, mas logo ela entrava num ponto cego e desaparecia. Depois eu olhava para a cidade, para a quietude da rua deserta sob o aguaceiro. Quando ela aparecia novamente, mais uma vez prestava atenção na incompletude de seus movimentos e ficava alegre porque mais tarde iríamos estar juntos. Então mais uma vez ela saía de meu campo de visão e mais uma vez eu voltava a contemplar os telhados castigados pela chuva, a luz amarela e opaca que descia do alto dos postes, e às vezes ligava o rádio e alternava entre uma estação que tocava sucessos antigos e a narração de um jogo de futebol.

2 comentários:

Paulo Bono disse...

viajo nesses textos cara. tem literatura, tem cinema, tem sensações .abraço,

mississipi disse...

fala Paulo

é sempre bom tê-lo por aqui. e fico feliz por saber que você gosta do que tem lido.

valeu