domingo, 14 de outubro de 2007

possível fragmento (em dezembro)

O ano anterior fora horrível, embora quase salvo pelo mês de dezembro, de muitas caminhadas noturnas e visitas a casas de fliperamas e salões de bilhar. No primeiro desses passeios, saí às ruas apesar da ameaça de chuva – nuvens avermelhadas acima dos telhados e um vento forte e úmido que vergava as palmeiras e erguia um torvelinho de papéis e pétalas de flores. Desde os tempos do Pato, antes de ingressar na faculdade, eu não perambulava pelas ruas da cidade velha durante a noite. E foi bonito ver, nos quarteirões perto do Mercado Municipal, aquelas construções de 1930/40 destruídas pelo abandono e enfeitadas com luzes amarelas, verdes e azuis. Perto da Praça da Catedral o vento era tão forte que as árvores, curvadas, quase tocavam o solo. Continuei caminhando, passei pelas sorveterias e esquinas cheias de gente e logo alcancei aquele trecho mais escuro da Rua Amazonas, antes de ela voltar a se iluminar e desembocar na Praça do Teatro, a mais bonita da cidade durante a época do natal, pois o chafariz fica ligado toda a noite e as copas das árvores são adornadas com gigantescos e fulgurantes frutos de plástico vermelho. Nesse trecho escuro da Rua Amazonas, havia uma casa de fliperamas.

Quando voltei às ruas, os ventos tinham cessado. Agora, da imobilidade das árvores e do céu, descia um ar gorduroso e sufocante. Cruzei a Praça do Teatro e continuei descendo. Quando alcancei os quarteirões mais baixos da cidade, a pestilência do ar já era insuportável: o que perturbava, quase tangível, era mais do que a súbita aspereza da atmosfera, mas a consciência de uma carne insone há madrugadas, curtida pelo sol, arrefecida pelos ventos noturnos e depois fustigada por uma inesperada alteração na densidade do ar. Eu caminhava pelo quarteirão onde, há alguns meses, numa tarde de sábado, vira um bêbado estatelar-se no chão. Lembrei-me de como parecera morto, da poça de sangue que começara a se formar ao redor da cabeça, do grupo de homens que correram para ajudá-lo e de como eu fora obrigado a tomar parte daquilo tudo, erguendo-o junto com os outros homens (eu segurava uma das pernas) e levando-o por um corredor estreito e fétido, o qual terminava numa sala escura, onde um grupo de velhos sem camisa e cheirando a bebida se reunira em torno da tevê. A essa altura, o bêbado tinha começado a recobrar a consciência e sacudia, pesada e debilmente, as pernas. No caminho de volta, enquanto ainda caminhava pelo corredor, observei, no chão poeirento, o rasto de sangue, e pensei com horror na possibilidade daquele sangue ter me tocado na pele, nas roupas. Logo depois topei com uma rapariga de cabelos claros, olhos escuros, trajando uma bermuda puída e uma camiseta apertada que permitia ver, na altura do estômago, pedaços de uma carne lívida e flácida. Ela tinha saído de um dos bares do outro lado da rua e, ao me abordar, perguntou se eu tinha um preservativo para lhe vender. Respondi que não. Ela questionou os outros homens que haviam ajudado o bêbado, seguiram-se risadas.

Em casa quis escrever um poema. Quis que o nojo e o desprezo fossem ternura e depois quis que a ternura fosse o espírito do mundo. Até cheguei a escrever meia dúzia de versos de uma mentirosa indulgência. Poucas semanas foram o bastante para eu deixar de pensar no homem caído, mas a memória da menina perdurou por meses. Ao passar por aqueles sítios, não deixava de olhar para os bares, pastelarias, hotéis antigos transformados em pensões escuras e decrépitas. E, se nem sequer posso dizer que havia desejo e busca, também não posso afirmar a ausência de desejo ou busca. Eu apenas mirava aquelas pessoas e aqueles prédios e pensava em como a vida podia ser tão baixa, em como a carne era capaz de se degradar, e muitas vezes vinha quase uma ânsia de se misturar – o impulso de estar dentro, de entender, de saber, de ao menos provar aquilo que era tão miserável e fértil e talvez inumano; e às vezes, como naquele primeiro passeio noturno em dezembro, eu me demorava de propósito, rondava os quarteirões, procurava um vestígio de beleza, ao menos um sinal de que o nojo e desprezo pudessem ser ternura e ao menos um indício de que a ternura pudesse ser o espírito do mundo. No entanto, tudo o que eu fazia era andar. Era olhar para as luzes ardentes, para a degradação – tudo o que fazia era nunca desejar, nunca buscar, mas também nunca deixar de desejar ou buscar.

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