quinta-feira, 6 de novembro de 2008

sobre a juventude

"Vejam", disse Pedro, que tinha os olhos fixos na distância, "eis o homem cujo rosto foi destruído por águias e falcões ".

Era uma dessas tardes no início do verão, quando a noite demora mais a chegar e quando o sol, antes de se esvair, abre sobre a cidade uma sombra límpida e calma. Para onde quer que olhássemos havia silêncio. E o silêncio, no momento em que interrompemos os nossos afazeres e miramos o homem apontado por Pedro, ganhou uma existência tangível, quase solene. Lá estava, todos nós o contemplávamos: o homem que fora desfigurado por aves majestosas. Ou melhor: nós o víamos, mas não víamos a sua face destruída, uma vez que durante todo o tempo ele esteve distante, e as cores da luz em fuga – agora percebíamos – não caíam sobre a cidade, mas sobre o seu corpo, que parecia apartado de nós por uma inultrapassável linha de sombra.

Ainda assim, não deixamos de observá-lo por um segundo sequer, pois ele era o peregrino pelo qual muitas vozes suplicavam, o eleito a quem tantos teriam confiado os próprios corações. O rosto destruído lhe conferia uma grande autoridade moral, uma natureza quase divina, ou talvez – por motivos misteriosos – a sua presença era o bastante para que nos sentíssemos próximos do que havia de mais grandioso em nós. De repente tínhamos a consciência de algo terrível porque maravilhoso e urgente e isso não se traduzia em palavras, tampouco em atos. Pois foi apenas isso o que aconteceu durante aquela tarde. Observamos a passagem do homem de rosto carcomido por talvez vinte minutos. Ele não se aproximou, nada falou. Nós guardamos atitude semelhante. O silêncio, cuja existência parecia tão fecunda e alegre, precipitou-se em um canto de cigarras. No céu, as cores em fuga assumiram um difuso brilho dourado, que se tingiu de vermelho, que se transmudou para o violeta, que passou para um pálido azul, que escureceu, que se transformou em noite. No dia seguinte, soubemos da morte daquele que tivera o rosto devorado pelas aves.

Depois daquela semana de eventos singulares, seguimos com as nossas existências, as quais se revelaram econômicas tanto nos triunfos quanto nas mesquinharias. Apenas muitos anos mais tarde – quando éramos velhos cujas vozes eram um frêmito que se esgotava – viemos a conhecer outras histórias a respeito do homem que assombrara a nossa juventude. "As aves não o atacaram e ele nunca foi mais do que um miserável, um porco que desperdiçou a vida em prostíbulos, que se apaixonou por mulheres corruptas, que teve o corpo roído por uma infinidade de doenças venéreas" – eis o que passaram a dizer, e o debate cresceu até que se decidiu exumá-lo para estudos, mas também esse ato não possibilitou qualquer conclusão: a terra, que o acolhera como um sudário, também apagara qualquer vestígio de sua existência neste planeta.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ainda não é agosto mas o calor começa a voltar, pensou Oklahoma enquanto, durante o entardecer do domingo, caminhava da Praça dos Gatos até a sua casa. Acabara de anoitecer e nuvens brancas de mormaço se reuniam em um céu que, ainda que estivesse límpido, estaria sem estrelas. Um bafo quente descia por entre as árvores e trazia um cheiro de poeira e terra queimada, mas o vento não era contínuo – em alguns momentos os galhos das árvores ficavam completamente imóveis, embora o cheiro de terra queimada permanecesse. Das auréolas de luz no alto dos postes caía um brilho amarelado que, incidindo sobre as fachadas das casas velhas, conferiam ao bairro um aspecto de vilarejo localizado nos confins do México, quase na fronteira com os Estados Unidos. Os ruídos que eram ouvidos: acordes de canções que, conforme a intensidade das brisas, aproximavam-se ou afastavam-se; a narração de um jogo de futebol pela boca de um locutor de rádio; as vozes dos homens que, dentro de um bar cuja porta estava descida até a metade, jogavam baralho sinuca e bocha; os Salmos entoados durante a missa das seis horas – tudo isso apenas aumentava a sensação de cidade onde reina apenas o murmúrio. Em um lugar assim, os mortos, tanto os do passado quanto os do pôrvir, nunca deixam de ser ouvidos, os seus afazeres são ruidosos e vazios de significado, e as melodias por eles sussurradas são de uma melancolia avassaladora.

Ao lado de Oklahoma, caminhava o seu pai. Nos primeiros quarteirões, conversaram sobre a tristeza de outros domingos. A equipe de futebol pela qual torciam, durante o campeonato do ano passado, realizara uma campanha sofrível, e eles relembraram os dolorosos crepúsculos durante os quais, após a derrota, precisavam aprontar a avó agonizante pois também era chegada a hora de devolvê-la ao asilo. Durante as preparações exigidas para o ato, o céu – um amontoado de nuvens pardacentas e pálidas que se incendiavam nos limites do poente – tratava de se apagar e, quando ligavam o carro, a noite era uma realidade da qual não podiam escapar, pelo menos no interior do bairro onde viviam pois, logo que o veículo alcançava a Avenida Norte, era possível observar o entardecer com maior nitidez. Para tanto, precisavam apenas virar o pescoço na direção do oeste – isso bastava para a contemplação de olarias e postos de combustível em ruínas, choupanas de madeira, cavalos comendo capim seco às margens do raso e poluído ribeirão que seguia parelelo à avenida por quilômetros, os milhares de mosquitos e gafanhotos que zuniam acima das águas, as crianças que corriam e jogavam bola muito próximas do acostamento. Sobre esse cenário o céu era um ardor incandescente que logo se desmanchava em vapores avermelhados e depois, quando a noite finalmente tombava sobre toda a cidade, os bairros mais pobres passavam a existir debaixo de uma luz alaranjada e escassa e o cheiro de terra estiolada ficavaa mais forte do que qualquer outro odor. No banco de trás, a avó ora balbuciava incoerências, ora se engasgava com a própria língua, e o pai, ao evocar esse detalhe enquanto caminhava da Praça dos Gatos até a sua casa, falava da derrota e da doença e da morte com os olhos turvados pela nostalgia.

Após o jantar os ventos ganharam força e, ao soprarem sobre as folhas das bananeiras no fundo do quintal, ergueram um frêmito que se manteve durante o resto da noite. Quando as brisas sopravam com intensidade ainda maior, esse cicio perdia a sua monótona constância e o que se escutava era um ruído parecido com o de enormes árvores rebentando e caindo dentro da trevas; portas e janelas batiam aqui e ali, e o eco do estrondo provocado por esses impactos permanecia no ar por um instante a mais do que seria o natural, e essa irreal permanência dos sons assumia a existência quase-corpórea de um hálito que, deslizando sobre a pele de Oklahoma, abria buracos de perplexidade e espanto dentro de seu espírito. No minuto seguinte um bêbado gritava. Também a sua voz reverberava na atmosfera por um tempo insuportável, e em Oklahoma o assombro aumentava na medida em que tudo aquilo se revelava mais e mais familiar. Logo será agosto e estará calor novamente, pensou em mais de uma ocasião, e o inevitável retorno do calor provocava em Oklahoma um sentimento de angústia que beirava o esgotamento nervoso, pois o futuro chegava e trazia apenas a repetição do passado. Para a natureza pouco importava que, em um romance escrito há dois ou três anos, Oklahoma já vivera noites exatamente como aquela. O calor chegou como nos anos anteriores, ele havia escrito, e agora sabia que escrevera tal frase (e talvez todo a saga de Carlos Shangai) com a secreta esperança de que, nos anos vindouros, o calor chegasse de maneira diferente – mas não, durante todo o futuro o calor voltaria a chegar exatamente como nos anteriores, e nem sequer restava o consolo de compreender e escrever isso pela primeira vez.

Na manhã seguinte, Oklahoma acordou tarde e não foi capaz de se concentrar nos estudos. Ainda deitado na cama, respirou o cheiro de sol que havia se esgueirado para dentro do quarto e por um momento teve a sensação de que – durante o sono – regressara para uma época em que fora outro. O nome Carlos Shangai, como se houvesse sido chamado pelos ventos impregnados de terra e luz, ressoou como uma evocação fantasmagórica, mas no minuto seguinte tudo retornou a um silêncio que, a intervalos irregulares de tempo, era maculado pelos ruídos do vento que erguia torvelinhos de poeira e folhas mortas. Depois, ao ouvir um grito e em seguida o barulho de britadeiras, ficou com a impressão de que habitava um mundo onde co-existiam a irreal (e torturante) permanência do passado e os berros de máquinas trepidantes.

Lavou-se e foi até o quintal. O pai, agora aposentado, estava sentado na varanda da casa que no passado pertencera a avó. Lia o jornal e, ao perceber a presença de Oklahoma, ergueu a cabeça e o saudou. No fundo do quintal, a mãe regava as samambaias e os vasos de flores vermelhas e amarelas. O céu era de um azul puro, sem nuvens, e o sol – ardendo forte sobre os telhados – lançava sobre o bairro uma claridade que, apesar de ser poeirenta, também era cristalina. O som de britadeiras vinha de um terreno no outro lado da rua, onde era erguida uma construção de dois andares. Os operários que lá trabalhavam comunicavam-se aos gritos, mas às vezes todos se calavam e até as máquinas deixavam de ser escutadas, de modo que tudo o que chegava aos ouvidos de Oklahoma eram os indistintos e afastados rumores da manhã de um dia útil. A mãe, ao vê-lo, sem deixar de regar as plantas, reclamou do excesso de ventanias e de poeira lançada sobre os móveis. Em outras palavras: para o dia (e para as pessoas que o habitavam) era como se não houvesse passado, ou melhor, era como se o passado não passasse de uma abstração – como se o sentido dos dias idos não fosse mais do que um pensamento tido por Oklahoma, e agora, com a chegada do calor, ele não podia evitar a repetição desse pensamento que, apesar de exaurido, insistia em permanecer.

Pela tarde recebeu um telefonema de Pizarro, que conhecia desde os tempos do liceu e com quem mantinha uma amizade incomum, sendo que o adjetivo incomum serve para deixar claro que se tratava de uma amizade que prescindia de hiearquias. Oklahoma e Pizarro, em suas aventuras pela cidade, eram como dois Sanchos Panças que, na falta de companheiros ou acontecimentos que colocassem ambos no rumo de um sincero quixotismo, contentavam-se em perambular por perambular. No entanto, apesar do companheirismo que existia entre eles, aquele telefonema não deixava de ser uma surpresa: no ano anterior Pizarro havia se casado e agora vivia em uma próspera cidade nos arredores de uma hidrelétrica. Por esse motivo, as suas idas à cidade onde crescera eram cada vez mais esparsas, e aconteciam apenas durantes os finais de semana e feriados.

Encontraram-se nas escadarias do teatro. Pizarro sugeriu de caminharem até o salão de bilhar da Rua Santiago. Oklahoma alertou o amigo que o salão de bilhar estava diferente da época em que o freqüentavam. Disse que, na última vez que passara lá em frente, havia observado apenas uma mesa de bilhar e que, ao que tudo indicava, a intenção do novo proprietário era transformar o estabelecimento em uma lanchonete ou pastelaria. Pizarro insistiu. Afirmou que, ainda que não pudessem jogar, gostaria de ver o lugar.

Partiram e, após terem andado apenas dois ou três quarteirões, ambos tinham as frontes úmidas de suor. O calor aqui não muda, eu saberia que estou na cidade ainda que estivesse com os olhos fechados, comentou Pizarro com uma voz cuja rouquidão forçada era o maior indício da secura do clima.

Não, nunca muda, foi a resposta de Oklahoma, que também parecia ter dificuldades para respirar. O sol da tarde, abrasado pelo mormaço e pela poluição, brilhava na altura dos seus olhos e o horizonte não era mais do que perfis de prédios quase que totalmente imersos em uma claridade crua e ofuscante. As ventanias, que durante a manhã haivam sido tão intensas, agora eram incapazes de erguer redemoinhos de poeira e folhas secas, e talvez por isso desaparecera o cheiro de terra queimada pelo calor. Oklahoma e Pizarro, ao respirarem, tinham os pulmões arranhados pela aspereza de uma ar que cheirava a gasolina e diesel.

Isso lembra os tempos do liceu, disse Pizarro, e agora a sua rouquidão parecia estar modulada por um sentimento mais próximo da perda do que da suavidade da nostalgia. Lembra de Marina? Ela parecia pura. Tinha a pele branca, suave, estava sempre rindo, sempre com os olhos alegres. Queria poder acabar com a virgindade de uma garota assim.

Uma vez um sujeito me disse que meninas assim ainda cheiram a leite da mãe – respondeu Oklahoma – mas achei essa imagem incestuosa demais. O cheiro de uma garota como Marina é mais frágil do que a própria garota, que já é frágil. É como se ela tivesse começado a ter uma essência feminina há poucos dias, há poucos minutos. E não é um cheiro doce; é um cheiro mais ácido do que doce, um cheiro de alguma coisa que ainda não começou a estragar. Acho que não seria capaz de acabar com a virgindade de uma menina assim. Não por escrúpulos, não por pudor, mas por me sentir tão próximo de uma beleza ao mesmo tempo tão absoluta e precária que isso me deixaria paralisado. Eu olharia Marina sem roupa, ela deitada na cama, os seios pequenos e rosados como feridas abertas no peito, as pernas abertas, a buceta inchada pela umidade, saltando à flor da carne e abrindo-se sozinha. É terrível. Eu ficaria aniquilado, dividido entre ser insuportavelmente terno (quase paternal) e idéias de violência, pois quando a beleza surge assim a gente quer destruí-la, a gente quer humilhá-la até que desapareça o encanto que surgiu em nós.

Dói pensar nisso. Dói imaginar como seria ter a idade que tenho hoje e comer a Marina de dezessete ou dezoito anos, falou Pizarro.

Hoje ela tem a nossa idade.

Isso dói mais ainda, fico cheio de raiva. Se agora eu visse Marina, acho que não sentiria nada além de raiva. Ela pode continuar bonita, pode querer se deitar comigo, e eu iria. Ela ainda deve provocar muita angústia em que a vê, mas não consigo deixar de ter raiva, não consigo deixar de sentir dor ao pensar nisso tudo. Eu quero a Marina de dezessete anos, disse Pizarro, e forçou um riso, como se ele e Oklahoma sofressem de um apetite cancerígeno que mataria ambos, de modo que que tudo o que restava era rir do corpo em declínio.

Nesse momento – de um terreno a poucos metros de distância, ocupado por tratores e caminhões – veio um estrondo e, no momento seguinte, uma névoa branca e áspera ganhou a rua com velocidade espantosa. Os operários que esperavam diante do terreno começaram a tossir e, tossindo, sumiram dentro daquela bruma que agora avançava sobre os dois amigos. Oklahoma sentiu os pulmões serem invadidos por algo que lembrava areia fervente. Pizarro teve uma sensação parecida e, ao começar a tossir, teve náuseas. Devido à sujeira presente no ar, ficava difícil olhar para frente pois era grande a chance de ter os olhos feridos pela poeira que integrava aquela parede de fumaça. Portanto foi quase às cegas que Oklahoma e Pizarro aceleraram o passo e só voltaram a abrir os olhos quando sentiram o sol da tarde queimando sobre as suas peles.

Acho que derrubaram alguma casa, falou Pizarro, ainda tossindo. Com uma frase monossilábica, Oklahoma concordou e, ao olhar na direção do amigo, espantou-se. O seu rosto havia sido quase que inteiramente coberto pela poeira branca, o que, em contraste com os olhos fundos e de um verde muito escuro, deu a Oklahoma a terrível e grotesca impressão de que Pizarro era, na realidade, um cadáver. Lembrou-se do filme "Morte em Veneza". Mais precisamente, lembrou-se do rosto de Gustav Ashenbach quando, após ter se entregado aos cuidados do barbeiro do hotel, caminha pelas ruas pestilentas com os bigodes pintados de negro, a boca sanguínea, o rosto maquiado por pó de arroz, com um sorriso enlevado pelas palavras do funcionário do hotel:"Agora você voltou a ser jovem. Agora está pronto para o amor"

A sua cara está toda branca, enfim disse Oklahoma. Pizarro passou as mãos no próprio rosto e em sua fronte (ainda úmida de suor) ficou a marca deixada por seus dedos. Pizarro pareceu não se importar com isso e, com uma voz muito calma, informou que também Oklahoma tinha o rosto sujo de branco.

Poucos minutos depois alcançaram a Rua Santiago. Pizarro caminhava alguns metros a frente de Oklahoma que, à medida que se aproximavam do salão de bilhar, andava mais devagar. Por fim – diante do estabelecimento, no outro lado da rua – ambos estacaram. Das quatro portas do salão de bilhar, três estavam fechadas e eram de um azul refulgente, que devolvia com ferocidade a luz do sol que, também raivosa, incidia sobre elas. A única porta aberta mostrava as ruínas que eram o interior do edifício: todas as mesas de bilhar haviam sido tiradas, o balcão fora derrubado e agora era reconstruído nos fundos do salão, no lugar antes ocupado pelas mesas cujas caçapas eram de barbante, os pisos também haviam sido retirados e o chão era de terra batida, enquanto que do teto da contrução pendia um confuso emaranhado de fios. Em meio a esses escombros, uma dupla de negros trabalhava aos sons de canções saídas de um rádio mal sintonizado, de modo que a estática prevalecia sobre a melodia. Os negros quase não falavam entre si, e, trabalhando com obstinação, às vezes faziam um movimento mais brusco e erguiam uma pequena nuvem de poeira que era desmanchada pela luz assim que ganhava a rua. Os cheiros mais fortes eram o de cal e cimento ainda úmido.

Vamos embora, disse Oklahoma, mas Pizarro não respondeu ao seu chamado. Olhava fixamente para o interior do antigo salão de bilhar, dedicando maior atenção ora aos operários, ora aos escombros. Oklahoma, ao perceber que o amigo não o tinha escutado, lançou novo olhar na direção da construção. Teve a impressão de estar diante de uma lápide, quis ficar triste, mas o seu espírito pareceu se recusar a isso – era como se Oklahoma, ainda que de maneira inconsciente, soubesse que estava diante de um desses espetáculos que, apesar de desoladores, são tão triviais que o bom senso afirma que não podem causar a menor alteração no humor de quem os contempla. Em outras palavras: era uma perda que não podia, com rigor, ser classificada como perda, pois acontece dezenas de vezes por dia – algo como um marcante filme que sai de cartaz para nunca mais ser exibido nos cinemas, ou como um vendedor ambulante que deixa de passar pelas ruas pelas quais sempre transitou, ou como a linda menina que, após uma ou duas semanas de aula e após ter trocado encorajadores olhares e sorrisos com um rapazola qualquer, consegue transferência para uma outra escola. E Oklahoma, ao pensar em todos esses exemplos, perguntou a si próprio se resultava algum sentido da soma final de todas essas perdas-que-não-são-perdas. No instante seguinte foi trespassado pela sombra de algo terrível e inominável, e, enquanto ainda pressentia essa sombra se agitando dentro de seu espírito, voltou a pensar no fluxo de desperdício que o acompanhava há anos, talvez décadas. Disse a si mesmo: a consciênca nunca deixa de mostrar o que perdemos, o que foi deixado para trás. Se um dia, por exemplo, eu estiver habituado ao vazio deixado por Carlos Shangai ou pela angústia de nunca ter beijado Marina, um outro vazio vai se abrir, e então me lembrarei de algo ridículo e insensato, algo como uma lamentação por nunca mais ter andado por certa rua ou contemplado determinada rapariga, e isso vai ser terrível.

Sim, vamos embora, repetiu Pizarro, como se ele tivesse entendido o significado das palavras de Oklahoma com espantoso e incompreensível atraso. Ambos deram as costas ao edifício em ruínas e voltaram a caminhar. Logo em seguida ouviram novo estrondo e, ao olharem para trás, observarem que mais uma nuvem de poeira branca saía de dentro da construção que um dia fora o salão de bilhar. O vento e a luz, ao incidirem obliquamente sobre essa fumaça branca, formaram um torvelinho que, ao cabo de menos de um segundo, desmanchou-se. A tarde voltou a ser cristalina, mas agora – talvez porque o crepúsculo estivesse muito próximo – transmitia uma idéia de aspereza, agonia e cansaço.

Após vagarem sem rumo por vários minutos, encontraram, no caminho entre a Praça do Teatro e o Cinema Eldorado, um novo salão de bilhar. Tratava-se de um edifício estreito, bastante fundo, de paredes vermelhas, e cujo teto era mais baixo do que o normal. Havia quatro fileiras de mesas, e, ao fundo, um alto balcão de madeira. O sol da tarde ia apenas até a segunda fileira de mesas, e lá dentro o entardecer avançava com espantosa velocidade, de modo que, após transcorridos no máximo trinta minutos da chegada de Oklahoma e Pizarro, a luz já havia abandonado aquele recém-descoberto salão de bilhar, e assim o lugar repousava dentro de uma penumbra espessa e carmesim. Quando chegaram, todas as mesas estavam desocupadas e uma chinesinha de catorze ou quinze anos esperava atrás do balcão.

Oklahoma e Pizarro compraram cinco fichas, pediram cerveja, e foram até uma das mesas na fileira mais próxima da calçada. No outro lado da rua, havia apenas um imenso muro caiado e, à medida que a luz do sol declinava e caía a penumbra do entardecer, mais iluminado ficava o muro. Oklahoma, ao perceber isso, lembrou-se da morte da avó e durante várias vezes – como quem acorda e não sabe onde se encontra – teve a impressão de que jogava em algum salão de bilhar que ficava diante dos muros do cemitério. A chinesinha, talvez preocupada com o silêncio que imperava enquanto Oklahoma e Pizarro jogavam, foi até o aparelho de som e colocou uma fita cassete. A primeira música a ser ouvida, em seus acordes iniciais, lembrava inúmeras canções que falam de amor e nostalgia, mas, quando a voz do vocalista foi escutada, Oklahoma percebeu que ele cantava em mandarim. Passada essa estranheza inicial, Oklahoma e Pizarro concordaram que aquelas eram músicas muito bonitas.

As próximas quatro ou cinco canções também foram cantadas em mandarim, e todas seguiam um formato bastante ocidental. As mais lentas lembravam Sinatra em um dialeto estranho, enquanto que as mais aceleradas se aproximavam bastante de músicas como "You Got It" e "California Blues", ambas de Roy Orbison; e essa inusitada sequência de canções permitiu que Oklahoma experimentasse de um lirismo que nada mais era do que uma sensação de juventude reencontrada. O alegre assombro por desbravar as ruas da cidade velha, a novidade de não ter hora de voltar para casa, a exuberância de raparigas como Marina e outras meninas do liceu, estar em um salão de bilhar totalmente desconhecido, ouvir músicas até então nunca ouvidas, a crescente embriaguez sendo recebida como um estado de profundo encantamento – era como se toda essa realidade pudesse ser revisitada com igual surpresa, fascínio, e até terror ante a descoberta de uma beleza nunca antes contemplada.

Foi então que, para a surpresa de Pizarro e Oklahoma, as músicas cantadas em mandarim cessaram e o que veio foi uma série de antigas canções de amor, a maioria dos anos 70. Pizarro pareceu não se importar com essa mudança, ao passo que Oklahoma foi invadido por um pensamento bastante singular: imaginou um baile de formatura em alguma pequena cidade dos Estados Unidos (muito provavelmente localizada em algum estado como Missouri, Arkansas ou Georgia) e isso o levou a imaginar que, depois do baile, os rapazes e as garotas, metidos em camionetes, estacionariam no alto de um mirante, de lá contemplariam uma planície cravejada de luzes de néon e, mais ao alto e além, as estrelas de brilho límpido e esverdeado, e tudo isso – a implacável precariedade e ansiedade da juventude e de corpos que atingem um apogeu tão dolorosamente impossível de perdurar por mais do que poucos anos – o entristeceu. No instante serguinte escutou gritos e risadas ao seu redor. Virou a cabeça e observou que, em uma mesa próxima da ocupada por ele e Pizarro, um grupo de meninas jogava bilhar. Olhou para a mais bonita delas: ombros e braços magros, olhos de um pálido castanho, boca também pálida, uma blusa preta muito justa e que contornava os seios ainda em formação, uma calça jeans puída e suja, gestos expansivos (e, para além dos gestos e das risadas e frases de entusiasmo, percebia que a vida espiritual que habitava aquele corpo juvenil era frenética e ruidosa, e por um momento Oklahoma se lembrou do ar que cheira a ansiedade e euforia durante as horas que precedem o término de algum ano, e nesse momento a sua tristeza foi desbotando, cada vez mais contagiada por essa imaginada euforia) e cabelos presos em tranças, o que dava a entender que aquela menina perdia as suas tardes na feira hippie, vendendo objetos feitas por mãos sem qualquer brilhantismo – e isso, a tão evidente falta de talento em uma garota cuja única redenção era ser jovem, trouxe de volta os pensamentos tristes.

Eu entendo, bom homem. É dilacerante, disse Pizarro, com os olhos fixos no pescoço e nos seios da garota, ele com um sorriso torturado no rosto.

Oklahoma nada disse. Por poucos segundos, também ele com um estúpido e doloroso sorriso na cara, olhou para Pizarro. Depois voltou a observar a rapariga e as pessoas que a acompanhavam, e somente então percebeu que aquele grupo que ria e gritava não era formado exclusivamente por garotas. Havia um homem. Um sujeito com idade entre 35 anos e 40 anos. Cabelos longos e grisalhos, roupas imundas, pequenos olhos de roedor, rosto deformado por um esgar que não chegava a ser sorriso – enfim, um homem que, em condições normais, não receberia de Oklahoma mais do que um desprezo.

Ele ainda acredita que está à altura daquelas meninas, disse Oklahoma, a voz modulada pela raiva.

É um miserável, um náufrago que ainda não percebeu que Flebas e todos os outros morreram afogados, respondeu Pizarro.

Oklahoma, quanto mais olhava para o sujeito, mais o julgava repugnante. Por fim concordou com o amigo. Sim, é um náufrago, e o mais cômico é que deve se julgar um maldito, acredita que possui algum charme mas não passa de um fantasma, de um triste holandês voador, afirmou com o que lhe restava de desprezo, o rosto deformado por um esgar que permaneceu por vários segundos após a conclusão da sentença, como se Oklahoma tivesse sofrido um derrame cuja única consequência fora a rigidez dos músculos faciais. Demoraram vários segundos – talvez minutos – para que a deformidade desaparecesse e o rosto voltasse ao normal; tempo bastante para a noite cair sobre a cidade. A parede do outro lado da rua, agora exibindo um brilho fosforescente, ainda evocava os muros do cemitério. Oklahoma caminhou até a calçada e olhou para o alto. Era a primeira vez que estava no centro da cidade desde que fora inaugurada a nova iluminação. Agora poucos eram os quarteirões banhados por uma difusa e fugidia luz dourada, pois no cimo dos postes ardia um sol branco e ofuscante que dissipava todos os focos de sombras, o que dava às ruas um aspecto estrangeiro, e os ventos, que naquele mesmo lugar, há dois ou três anos, seriam abafados e venenosos, agora eram uma brisa gelada e esvaziada de cheiros e significados.

Cansado, Oklahoma quis regressar para casa, mas, temendo que o desconforto se mudasse em desespero tão logo ficasse sozinho, sugeriu que Pizarro pedisse mais fichas e bebida. Em seguida, caminhou até o banheiro. As luzes dentro do salão de bilhar estavam todas acesas, gerando uma claridade branca e asséptica como a que vinha do alto dos postes, de modo que as vermelhas paredes do salão de bilhar – que há menos de uma hora pareciam irradiar uma pesada névoa carmesim – lembravam apenas uma das inúmeras lanchonetes da cidade. Dos alto-falantes posicionados nas paredes não vinham mais os sons de bonitas canções de amor cantadas em mandarim ou qualquer outro dialeto, e o que se escutava, em meio a estática, era a delirante voz de um locutor de rádio.

Entrou no banheiro e acendeu as luzes. Um clarão branco relampejou dentro das trevas, tudo voltou a ficar escuro, veio novo clarão (agora menos intenso) e por fim se instalou uma claridade difusa. Oklahoma, ao olhar para as duas lâmpadas fosforescentes, percebeu que uma estava quase totalmente apagada e a outra funcionava com metade da sua potência. Na sequência observou a realidade ao seu redor. O banheiro se resumia a um cubículo de paredes caiadas. Em um dos extremos do cômodo, havia uma privada branca sem tampa e no chão, ao lado da privada, um magro rolo de papel higiênico. No entanto, o que mais chamou a atenção de Oklahoma, foi a ausência de obscenidades e frases idiotas escritas nas paredes, o que apenas ressaltou a sensação de mundo asséptico. Junto a uma das paredes laterais, havia uma pequena pia branca e, acima da pia, um fosco e quadrado espelho. Molhou os pulsos e uma sensação de alívio passou por seu espírito de maneira tão abrupta que foi sacudido por uma vertigem que, apesar de não ter sido forte o bastante para derrubá-lo, trouxe de volta aquele estado de assombro e perplexidade que é comum a quem acorda e não sabe onde se encontra. Ao desligar a torneira o silêncio relampejou dentro do cômodo da mesma forma que as luzes no momento em que ele acendera o interruptor. Esse silêncio foi o bastante para assustar Oklahoma, que foi acometido pela sensação de estar sendo espreitado por algo como um demônio. Olhou-se no espelho. O seu rosto, ainda sujo de poeira, permanecia branco, espectral. Tentou se lavar, mas a palidez parecia apegada à sua pele como areia fervente. Mirou então os próprios olhos, que estavam muito abertos, e pareciam estúpidos e apavorados.

Retornou ao salão de bilhar. Agora todas as mesas estavam ocupadas por grupos contendo até mais do que cinco pessoas. Todas gritavam, riam, falavam, e a voz do locutor do rádio não era mais do que um chiado irritante, modulado pela estática, e que reverberava como se fosse o evanescente vestígio de um sonho ruim. Foi até o amigo, que, com um aceno de cabeça, indicou que mais uma linda garota havia se juntado ao grupo da rapariga de cabelos trançados.

Sim, bom homem, é dilacerante, ainda disse Pizarro antes de estourar as bolas e iniciar uma nova partida. O barulho provocado por esse estrondo inicial ecoou – seco e estridente – por todo o salão de bilhar. Nenhuma das bolas teve como destino a caçapa e Pizarro, com um sorriso de descontentamento, virou o seu rosto branco na direção de Oklahoma e afirmou que aquela era uma noite marcada pela ausência de sorte.

Aos poucos, o frenesi que vinha das outras mesas foi perdendo a intensidade, e não demorou para que todos os rumores (as vozes das outras pessoas, a estática do rádio mal sintonizado, o estrondo nascido dos choques entre as bolas) assumissem a natureza de um frêmito amortecido. A sensação de terror, que atingira o apogeu no instante em que Oklahoma fora até o banheiro, também se aquietou. Pizarro, após ter ganho a partida, caminhou até a calçada e lá ficou imóvel por alguns segundos, respirando o ar noturno. Ao retornar para o salão de bilhar, disse que nenhuma outra cidade do mundo lhe causava tanto febre e euforia, e na sequência deixou o corpo cair sobre uma cadeira. Parecia insuportavelmente exausto e – com o rosto sujo de cal, os olhos de um verde profundo e pantanoso, semblante que oscilava entre o tédio, a cólera, a urgência e até o desespero – havia algo em sua atitude que o aproximava de um outro Pizarro, o conquistador espanhol, e era como se ele, após ter empregado todas as suas energias e sacrificado a vida de milhares de homens, finalmente alcançasse o Eldorado apenas para descobrir que era mais uma sítio devastado pela loucura e pela peste.

Sinto como se estivesse desaparecendo, sentenciou Pizarro, a voz sobrenatural na medida em que não parecia sair de um corpo. Sinto como se integrasse uma civilização, uma cultura que vai desaparecer quase sem deixar vestígios. É isso o que sinto – que tudo o que vivi e tudo o que irei viver não passa de uma entre tantas dinastias que existem sem que ninguém perceba. O que posso deixar de herança? Raiva? Ódio? Espanto? Nem o que possuo de pior necessita de mim para se perpetuar. Uma geração sucede a outra e não há nada que as una. O único legado que posso deixar é também o único legado possível: ter nascido, ter sido um homem, ter morrido, ter evaporado.
Sem deixar de ouvir o amigo, Oklahoma estudava o taco que tinha em mãos pois havia percebido que parte da madeira apresentava uma marca avermelhada. Considerou que talvez fosse uma mancha de sangue e a acariciou, pensando no ato de violência que a ela dera origem. Nada sentiu, mas se lembrou do romance que escrevera e o nome Carlos Shangai ressoou como um chamado sinistro. Foi então a vez de Oklahoma caminhar até a rua. Apesar do alvor que vinha do alto dos postes, era uma noite quente, típica de agosto, e pela primeira vez – desde que anoitecera – Oklahoma sentiu o cheiro de terra queimada e percebeu, vindos de longe, rumores indistintos. Pensou em Pizarro. Pensou que, para o amigo, a pior desgraça de todas fora abandonar a cidade. Mas ele sabia o que era permanecer. Sabia o que nunca era se divorciar da luz e dos lugares da juventude; sabia o quanto havia de impureza e de desespero naquela noite de nostalgia. E no entanto, como ele, Oklahoma, poderia existir em outro lugar? Por que, quando pensava em sair, considerava tal ato como o mais cruel exílio? Por que tinha medo de acabar como Pizarro (um homem que, para todos os efeitos mensuráveis, era bem sucedido)? Nesse momento, impulsionado por uma súbita piedade pelo amigo, disse: Vamos lá. Sursum Corda!

Pizarro, ainda largado sobre a cadeira, os olhos espectrais, a postura de quem encontrou apenas loucura, riu com desprezo. Sim, coração ao alto, corpo no inferno. É o que acontece, não? Tudo é terrível: sair, permanecer, retornar, perder o corpo da juventude, tentar conservá-lo a todo custo, ser um outro, nunca ser um outro. Tudo se repetiu infinitas vezes. Que novidade há naquela menina de cabelos trançados? Eu já vi centenas, milhares como ela, e todas desapareceram. Evaporaram. A beleza nunca permanece.

Oklahoma riu e, tentando ser malicioso, replicou mas quem não gostaria de comer uma garota como ela?

Pizarro encheu o copo com o que restava na garrafa, bebeu tudo com um único gole. Cheguei à cidade ontem, durante a madrugada. Sabe o que fiz? Peguei o carro e fui até a casa de Margot. Estacionei do outro lada e rua e fiquei olhando para as sombras. Depois fui às putas, mas não falei com nenhuma delas.

Vamos dar um passeio, disse Oklahoma, já se dirigindo ao balcão para pagar. Lá, contemplou a miúda figura da chinesinha que, aparentemente alheia ao que acontecia ao seu redor, assistia a um programa de calouros no qual os participantes falavam em mandarim e dançavam freneticamente. Oklahoma, ao prestar atenção no espetáculo enquanto a garota calculava o valor da conta, considerou toda aquela agitação muito engraçada e, enternecido, começou a rir, primeiro timidamente e depois quase gargalhando – um impulso que não foi capaz de conter e que, ao reverberar em seu espírito cansado, entorpecido e atônito, soou como a manifestação de uma força sobrenatural que agia em seu corpo e que era forte o bastante para suprimir o seu bom senso. Pizarro, que havia calculado com antecedência qual seria a cota que deveria pagar, após ter pousado uma nota sobre o balcão, dera as costas ao amigo e agora já o esperava na calçada. Tinha a intenção de que o ar noturno curasse a sua embriaguez.

A noite ainda cheirava a terra e a mormaço, embora agora um forte vento vergasse as árvores. Caminharam até o Cinê Eldorado, mas as portas já estavam fechadas. Ainda assim ficaram diante do cinema por vários minutos, tentando vislumbrar os cartazes dos filmes através das esfumadas vidraças. Dentro do cinema, ardia uma luz azul, e era como se uma criança dormisse em uma das poltronas do lobby, de modo que a mãe, para apaziguar o terror do filho, havia ligado um abajour que irradiava uma tênue e doce claridade.

Os rostos dos atores e as letras dos títulos, pairando sem peso dentro da fraca claridade, não podiam ser vistos com nitidez, o que impedia os amigos de saberem quais eram os filmes em exibição. O nome Carlos Shangai ressoou mais uma vez, e talvez por isso Oklahoma – com os nervos agitados pelos ventos que rebentavam árvores ao longe e perturbado pela natureza peremptória do chamado que não cessava de interromper os seus pensamentos – mais uma vez pensou que o que vivia nunca deixaria de ser uma torrente de desperdício, e ele nada podia fazer para afastar de si esse destino. Não há nada que cause maior assombro a um fantasma do que a realidade, quis dizer para Pizarro, mas se calou. Olhou mais uma vez para o interior do cinema adormecido. A imagem de uma criança que dormia sobre um dos sofás do lobby retornou aos seus pensamentos, mas com uma alteração: agora era como se a criança estivesse morta, como se aquele cinema fosse um mausoléu, uma câmara mortuária.

O livro que escrevi: enviei os originais para um concurso, Oklahoma disse, mas um estampido seco – seguido por um bater de asas - ecoou ao longe. Oklahoma lembrou-se da casa que vira ser demolida durante a tarde. Pizarro comentou que o estrondo viera da Praça da Catedral, e os dois amigos puseram-se a caminhar na direção de onde vinham os estouros.

Enquanto avançavam os ventos cessaram. O mormaço da noite tornava o céu tão escuro e profundo que nenhuma estrela parecia existir acima das aureólas de luz irradiada pelos postes. À medida que se aproximavam da praça, os estrondos aconteciam a intervalos de tempo cada vez mais curtos e, na atmosfera estagnada, era possível respirar o cheiro de pólvora. Chegaram. No interior da praça, mais da metade das lâmpadas estavam queimadas (as lâmpadas acesas emanavam uma difusa e fraca penumbra dourada), e a impressão que se tinha era de que a claridade branca nas ruas ao redor do jardim contornavam e definiam um vale de sombras tão maciças que a torre da catedral não era mais do que um indistinto vulto que se elevava contra as trevas. Oklahoma e Pizarro aproximaram-se dos dois homens que, imóveis no interior da praça, acendiam pequenos explosivos e os lançavam perto das árvores. Um deles era taxista. O outro era um padre, e, como se tivesse acabado de celebrar uma missa (hipótese bem provável, pois na catedral a última missa do dia acontecia às dez horas da noite), ainda trajava a batina negra. Magros, ambos tinha os rostos macilentos e repletos de sombras. Após arremessarem os explosivos, esperavam o estouro e então olhavam para o céu, pois o que se percebia – logo que o eco provocado pelo estouro da bomba desaparecia – era um quase inaudível farfalhar de asas. Oklahoma e Pizarro, assim que se acostumaram com a escuridão, puderam ver que, após cada estouro, bandos de pássaros saíam das copas das árvores. O padre, ao perceber a aproximação dos dois amigos, reconheceu Pizarro. O seu pai não é o seminarista?, perguntou e, antes que houvesse tempo para a resposta, voltou os olhos para o céu e, contemplando as aves que voavam às cegas no céu sem estrelas, afirmou: Queremos que os pássaros vão embora. Ele trazem a doença para a cidade.

Por que não vamos às putas?, sugeriu Pizarro, no momento em que saíam da Praça da Catedral. As bombas continuavam a estourar e o cheiro de pólvora era cada vez mais irrespirável.
Abriu uma nova casa de striptease na cidade, respondeu Oklahoma. Fica acima da Nove de Julho, mas não sei em que rua. Tem um nome de um lugar gelado e distante. Escandinávia, Estocolmo, Oslo.

Durante a metade inicial do caminho, ambos estiveram calados. A noite continuava sem ventos. O estrondo das bombas que explodiam na Praça da Catedral perdurou por inúmeros quarteirões, depois foi enfraquecendo e finalmente um manto de silêncio caiu sobre os telhados. A quietude, que a Oklahoma pareceu súbita e irreal, enervou-o ainda mais. Por um momento, como se fosse asmático, teve dificuldades para respirar, mas logo em seguida o ar (ansioso, áspero, fervente, cheirando a terra, cana queimada e poluição) invadiu os seus pulmões e ele considerou que toda a estagnação e pestilência da noite não seriam diferentes da que encontraria caso estivesse a bordo de um navio aprisionado pela calmaria. Olhou para Pizarro. Quis lhe dizer que a cidade era como uma embarcação imóvel no oceano, e que esse era o motivo de nada mudar: Com a proa voltada para o sul durante todas as auroras e crepúsculos, o sol sempre se eleva no mesmo ponto, realiza no céu um percurso idêntico ao realizado em todos os outros dias, e sempre incendeia a mesma paisagem durante o entardecer. Até a movimentação dos poucos ventos é previsível. Pela manhã, a brisa vem do leste; pela tarde ora sopra do sul, ora sopra do norte, e quando esse sopros acontecem simultaneamente redemoinhos de terra vermelha surgem e desaparecem no próximo segundo. Anoitece. Nos meses frios Vênus fica sobre a casa da avó, assim era quando ela vivia, assim continou após ela ter morrido. Durante o calor, o Cinturão de Órion nunca deixa de cintilar sobre as bananeiras. Do interior dessas árvores frutíferas, saem morcegos e vagalumes. Gafanhotos voam por entre as samambais. A miséria está ao norte. A euforia e a devassidão estão sempre ao sul – lá é possível se embriagar, se entorpecer, contemplar miríades de garotas que surgem como uma esplendorosa relva que, ao fim de duas ou três estações, são ceifadas pelo mesmo destino ceifou a relva que as precedeu. Ficar em um lugar assim durante muito tempo torna-se um maldição.

Esse discurso trespassou a consciência de Oklahoma com a velocidade de um relâmpago. No entanto, quem falou foi Pizarro. Começou a contar a história de uma garota gorda que havia conhecido durante a universidade. De como ela, em uma noite, bebera vinho até cair e de como fora incapaz de se erguer, patinando e despencando inúmeras vezes sobre o próprio vômito.

Era como uma barata virada com as perninhas para cima, disse Pizarro, e essa indireta (e talvez não intencional) alusão a Gregor Samsa revelou-se excessivamente cômica para Oklahoma, que – como já havia acontecido no salão de bilhar – começou a gargalhar com uma violência quase sobrenatural. Quanto mais ria, mais percebia o som das próprias gargalhadas ecoando pelos quarteirões desertos. Pensou então que acordaria todas as pessoas que viviam nos prédios por entre os quais caminhavam, e essa possibilidade soou amedrontadora (como se a gargalhada fosse o inequívoco sinal de uma possessão demoníaca, ou então o símbolo de uma decadência irreversível e repugnante, e nada seria pior do que ser contemplado por estranhos enquanto risse).

Entretanto, assim que cruzou a Avenida Nove de Julho, Oklahoma parou de gargalhar. Pizarro perguntou se ele tinha alguma idéia de onde ficava o lugar que procuravam.

Em alguma dessas ruas, respondeu Oklahoma. A potente luz branca que vinha do alto dos postes não dissipava as sombras formadas sob as frondosas árvores que, naquela região, existiam ao montes em quase todos os quarteirões; e era justamente no interior dessas sombras que se escondiam os vultos das prostitutas. Pelo menos foi isso que pareceu a Oklahoma e Pizarro após um olhar inicial. Mas logo eles perceberam que os corpos que esperavam – sussurrantes, ungidos por uma avidez terrível porque mentirosa – dentro das sombras eram de homens transformados em mulheres. Alguns deles, ao perceberem a confusão de Oklahoma e Pizarro, murmuravam frases provocadoras.

Percorreram os quarteirões acima da Nove de Julho por mais de trinta minutos, e em nenhum momento estiveram diante de uma construção que lembrasse uma boate de striptease. Na atmosfera sem ventos (o que tornava improvável a propagação de qualquer rumor) percebiam recortados acordes de uma música que nunca era identificável – algo como o tiaso fantasmagórico, o espectral rufar de tambores e ecoar de cornetas que, como Oklahoma havia lido em um poema de Kaváfis, assombrou Marco Antônio no momento em que este, de um balcão, contempla e diz adeus à Alexandria que ora perdes. Esse rumor de músicas, em vários momentos, esteve muito perto, mas – como em um sonho ruim – a cada momento parecia vir de uma direção.

Estacaram diante de um dos corpos imersos nas sombras. Perguntaram sobre a localização de algum lugar que poderia se chamar Estocolmo, ou Escandinávia, ou Oslo. O corpo, sem emergir das sombras, imóvel e sussurrante como uma demoníaca estátua enncontrada nas ruínas de algum cemitério pagão, afirmou que não conhecia um lugar com esse nome. Oklahoma e Pizarro seguiram caminho. O indistinto rumor de músicas deixou de ser ouvido.

Ela está grávida, afirmou Pizarro com uma voz muito cansada.

Ela quem?

Clarice, e a voz de Pizarro soou como se o nome da esposa fosse o de alguma divindade que, apesar de maldita, era objeto de uma eterna e incondicional reverência.

Há quanto tempo?

Três meses.

Parabéns, disse Oklahoma, e esticou a mão direita na direção de Pizarro. Após o cumprimento, ambos seguiram em silêncio. O frêmito musical voltou a ser escutado, agora vindo de algum ponto ao norte. Oklahoma sentia-se constrangido por ter dito "parabéns": era como se o singular significado de todo o dia (mas que significado poderia haver em uma jornada que buscava a ridícula repetição dos hábitos da juventude?) houvesse esmorecido, como se o lugar-comum dos votos de parabéns tivesse dissipado o encanto, lançando-os ao vórtice de uma noite e de uma existência absolutamente vulgares.

Olhou ao redor: os corpos dos travestis ainda ofegavam dentro da trevas, estranha música reverberava ao longe, a escassez de ventos não provocava o menor movimento nos galhos das árvores, do céu sem estrelas descia um bafo cálido, o inconfundível cheiro de terra queimada significava calor. Disse a si mesmo que não havia nada mais exaustivo do que a realidade – nada poderia ser mais absoluto e irredimível, e talvez por isso o seu coração não deixasse de se sobressaltar. O que vivia era pouco e, no entanto, o que vivia era tudo: a alucinada repetição dos dias, a luz em declínio, a luta do corpo para continuar sadio e perfeito, agora o espanto perante a perpetuação do que parecia ser tão precário e miserável.

O fato é que Oklahoma, ao perceber toda essa agitação dentro de si, lembrou-se do que havia sentido no funeral da avó: se naquela ocasião havia percebido um vínculo com todos os mortos de todos os tempos, agora o elo que julgava reencontrar era com todos os vivos de todos os tempos, e ao pensar nisso quis saudar o amigo com mais alegria, mas se conteve ao perceber que na noite o sentimento mais presente continuava sendo a fatalidade, e agora, mais do que nunca, essa fatalidade parecia ser uma mistura de medo e incompreensão – como se eles tivessem visto Lázaro retornar do mundo dos mortos apenas para morrer no minuto seguinte, agora para todo o sempre. Mirou Pizarro, mas logo desviou os olhos. O amigo aparentava estar entregue a sentimentos tão íntimos que sentiu pudor apenas de olhá-lo.

Clarice grávida, afirmou Pizarro, e a frase murmurada trouxe em sua sombra um espantoso significado – como se, oculto atrás da estranha concretude do amontoado de fonemas que acabara de pronunciar, já existisse o corpo do filho que um dia nasceria, e não era uma existência simbólica, abstrata: era uma existência física, um corpo feito de carne e músculos e desejo, e essa corporalização do filho ainda não nascido parecia vibrar em cada frase, em cada pensamento tido por Pizarro, de modo que o amor se impunha com tanta fúria que acabava sendo tomado por espanto e até medo. Para onde quer que Pizarro olhasse, lá estava o filho: a lenta e ineroxável formação de um pedaço de carne que já exigia uma devoção absoluta, uma terrível ternura.

Não se assuste, Oklahoma chegou a dizer, mas não completou o raciocínio. Pizarro parecia ter se esquecido da companhia do amigo, e agora, ao ouvir a voz deste, parecia não acreditar em sua presença, pois o fitava – o rosto grotescamente branco, os olhos atônitos – com toda a surpresa que pode existir em um homem. Oklahoma, constrangido, calou-se. Foi a vez de Pizarro falar: Não sei se quero tudo isso. Não sei se quero todo esse amor, essa infinita e grata reverência por uma vida que nasceu de mim. Estamos todos morrendo, mas, desde que soube da gravidez, sinto que estou morrendo cada vez mais depressa e que entre mim e a criança não pára de crescer um abismo.

Oklahoma, ainda sem coragem de olhar diretamente para o amigo, notou que um fraco vento havia agitado os galhos das árvores, provocando um frêmito quase inaudível. O cheiro de terra ia se misturando ao de orvalho, embora a noite continuasse quente e abafada. No outro lado da rua, um carro havia estacionado debaixo de uma árvore e era possível ouvir, vindo das sombras, as vozes de dois homens que discutiam preços e possibilidades. O rumor de música ainda reverberava ao longe.

Uma criança, Oklahoma, uma criança, e, ao ouvir o seu nome proferido pela boca de Pizarro, Oklahoma percebeu um sobressalto em seu coração. Lembrou-se de Carlos Shangai – de como o som desse nome traduzia um espanto que ainda permanecia em seu espírito, de como ele havia escrito que era assombroso para um homem ouvir um amontoado de fonemas apenas para perceber que por trás do que ouvia se escondia, mais do que o seu nome, tudo o que ele significava: todo o seu desejo, raiva, frustração, anseios. Era isso o que ele era agora: Oklahoma, esse amontoado de sons; e era isso o que ele seria até quando deixasse de existir, e era isso o que um dia se apagaria sem deixar qualquer vestígio. Até quis perguntar para Pizarro se ele se sentia diferente, mas se calou, pois se lembrou de que, ainda quando estavam no salão de bilhar, o amigo havia dito que se sentia como se estivesse desaparecendo, que o único legado que alguém podia deixar era ter nascido, ter sido um homem, ter existido, ter morrido.

Pizarro, como se houvesse escutado os pensamentos de Oklahoma, continuou: Não sei se dia vou estar pronto para morrer. Ter dado origem à vida e depois morrer – é a ordem natural, não? Mas como é possível aceitar isso? Como é possível dar origem a uma vida que também vai morrer? Como manter pura toda a ternura que se sente, evitando que apodreça? Não minto: às vezes torço para que ele nunca nasça, mas isso também é assustador. É quase insuportável se sentir ligado de maneira tão visceral à vida e depois perceber que essa ligação é frágil e cambiante como tudo o que existe.

Calaram-se por um momento. A vontade de Oklahoma era não mais caminhar por aquelas ruas; queria estar quieto, longe da estranha e anônima música que os acompanhava, longe da sensação de agosto tristemente revisitado, longe da luz que se quebrava e do inevitável desperdício do dias que se repetiam. Em outras palavras: ia se mudando em raiva e desencanto a nostalgia que, desde a manhã, impulsionava-o. De novo veio a sensação de nunca ter se afastado, o sentimento de velhice, o cansaço contra as estações que, invariavelmente, regressavam. O que mais almejava agora era fechar os olhos, deixar de existir pelo máximo de horas possíveis, e, quando despertar, olhar com ollhos indiferentes para o próprio corpo, para os anseios sufocados (podia sentir o nome Carlos Shangai se esfarelando na noite sem ventos, fonema por fonema ia desaperecendo, sem deixar ecos) e para a juventude que ia se maculando.

Pizarro, que também parecia perceber o fracasso da noite, tinha o semblante triste e apavorado. Agora era um homem mudado, com um filho dentro do espírito, e o que subia ao seu rosto branco era o medo de morrer, de fracassar, de não saber ser o homem que agora era obrigado a ser, e talvez por isso o que ele um dia fora ainda se agitava com tanta fúria dentro do seu coração. Por fim Pizarro olhou para o alto, para uma fraca lua que ia saindo de dentro das trevas e que trazia, em seu rasto, estrelas igualmente pálidas e mortiças. Depois, como quem não consegue escapar de um estado de encantamento, voltou a falar de Marina: da maravilha que seria acabar com a virgindade de uma garota como Marina aos dezessete anos. Então se calou novamente. Olhou para Oklahoma, um sorriso de cumplicidade tentou se formar em seu rosto, mas o sorriso que veio revelou apenas horror e estranheza perante tudo o que o cercava. Uma criança, Oklahoma, uma criança.

domingo, 6 de janeiro de 2008

a praça aqui perto de casa: 25 de dezembro, 01 de janeiro

Tive vontade de fotografar a praça que fica aqui perto de casa nos dias de Natal e Primeiro de Janeiro. Em ambas as ocasiões, ao passar por lá, acabara de chover e o lugar estava vazio: crianças não brincavam no parque de diversões, ninguém caminhava por suas alamedas, e os bancos de madeira permaneciam abandonados. Debaixo do céu – que vergava-se, baixo e cinzento, sobre a abóbada formada pelas árvores – os globos nos postes de iluminação irradiavam um calor que oscilava entre o vermelho e o amarelo, e, no entanto, ainda não era noite. Devido à intensidade das chuvas, galhos e folhas recobriam o chão, e o cheiro que pairava (macio, amortecido) era o de terra molhada e ferrugem (este último cheiro era mais intenso perto dos brinquedos do parque de diversões). O chafariz, sem uso havia anos, transbordara e, com uma camada de folhas castanhas boiando sobre a superfície da água, mais parecia um charco. Também havia, junto à banca de jornal, caixas de madeiras antes usadas para o estoque de frutas. É que, nas semanas que antecedem o natal, a praça costuma ser tomada por comerciantes que vendem os frutos da estação (uvas, pêssegos, ameixas gordas e vermelhas, caquis), mas agora, finda a época de vender, as caixas tinham sido abandonadas e dentro de algumas permaneciam frutos apodrecidos, de modo que das caixas erguia-se um perfume doce, muito doce.
No dia 25 de dezembro, o contato com a praça foi de ternura e alguma comoção. Até então vinha conseguindo me manter fiel à euforia que é característica das festas no final do ano. Entretanto, ao caminhar pela praça, era como se enfim ultrapassasse as fronteiras da melancolia, instalando em mim a sensação e o medo da perda. Em outras palavras: mais do que perceber a precariedade e a miséria daquele cenário, veio em mim a certeza de que nunca voltaria a encontrar uma paisagem que me seria tão familiar – era como se me soubesse dentro daquele globo de neve que Kane, após murmurar rosebud, deixa quebrar-se no chão. Nos dias seguintes permaneci dentro dessa nostalgia banhada pela neve, e gostei de passear pela cidade que agora, após o natal, estava vazia. Podia contemplar as casas, os telhados, os poucos campanários, e até amontoados de árvores em lugares de intenso trâfego e frenesi. O ápice da tristeza foi no dia 31 de dezembro, quando, no caminho até a casa da minha namorada, passei no prédio onde ela trabalhara e onde eu a apanhara nas primeiras semanas de namoro. Há alguns meses o lugar fora posto abaixo, para dar lugar a um novo edifício, mas até então não havia compreendido o que isso significava. Deste canteiro de obras, rumei para a casa da namorada. As ruas estavam iluminadas, na distância espocavam fogos (e depois vinha um silêncio espectral) e as próprias pessoas que passavam gritando, alegres e alucinadas dentro dos seus carros, pareciam morrer tão logo viravam a esquina e as suas vozes deixavam de ser ouvidas. Depois, já acompanhado da namorada, tratei de me distrair e até deixei de lado a melancolia; talvez isso tenha acontecido porque nos comportamos como num dia normal: na tevê vimos os programas habituais, tivemos as mesmas conversas e tratamos de exorcizar de nós qualquer sentimento em relação ao passado e ao futuro. Quando, à meia-noite, todas as bombas explodiram, não me senti miserável, e conservaria esse estado de espírito caso não tivesse visitado a praça no dia seguinte. Ela ainda era o globo com a paisagem imersa na neve que Kane segurara, mas agora eu tinha a sensação de que ele já havia murmurado rosebud, deixando o vidro quebrar-se no chão. Foi isso o que pensei enquanto caminhava para casa. Nos dias seguintes, tratei de voltar à rotina, a melancolia evaporou e continuei a freqüentar os lugares que meu espírito havia dado como perdidos. O estranho, penso, é que não sinto como se tivesse encenado uma contradição.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

janeiro

Se me lembro de janeiro, lembro-me daquelas tardes de chuva que vieram após um mês de dezembro especialmente luminoso. Na verdade, o ano anterior, do começo ao fim, fora cravejado de luzes e triunfos, mas agora – chegado o ano novo – a rapariga que me acompanhara em tais conquistas descia ao mar e eu nem sequer suspeitava que nunca regressaria. Nos primeiros dias, ainda estive tomado pelo enlevo e pelo perfume do amor. A solidão inicial teve como marca longos passeios pela cidade, pois, se me lembro bem, chovia até às quatro ou cinco da tarde; depois disso nuvens estacionavam sobre os prédios, e por vezes era como caminhar à sombra de um muro onde floresciam ervas suaves e olorosas (mal sabia eu que, à sombra dos jazigos, também germinavam flores tão perfumadas quanto). Durante os passeios, andava por ruas e praças cobertas por pétalas-galhos-folhas arrancados durante as tempestades, e quase não conseguia ouvir o ecoar dos meus próprios passos. Procurava manter o espírito e, sobretudo, o corpo longe dos devaneios, embora ambos tenham me traído um par de vezes. O espírito me atraiçoou quando, durante uma caminhada, tive a suspeita de que a rapariga não descera ao mar, de que continuava na cidade, e, a cada esquina percorrida, sobresaltava-me ante a possibilidade de reencontrá-la. A traição do corpo, por sua vez, veio na esteira de uma confusão decorrente de um jogo de espelhos. Aconteceu durante uma das tardes menos solitárias, quando, na companhia de um amigo, jogava no salão de bilhar da rua santiago. Lá fora chovia aos cântaros e a umidade espalhava-se como mofo no ar, grudando nas paredes e na carne. Na mesa ao lado, um grupo de jovens divertia-se e, entre eles, havia uma miúda que julguei idêntica àquela que fugira de mim. Apenas por isso, a desejei com uma violência criminosa, e foi nesse ponto que os passeios pela cidade começaram a ganhar um aspecto de pesadelo, sobretudo quando não chovia ou parava de chover – aí descia sobre os telhados uma claridade fina e ardente como um chicote, e o mormaço que se erguia ganhava um cheiro de água podre. Quando isso acontecia, o relógio costumava marcar sete, quase oito horas, e eu gostava de passar as noites em casa, afundado na espera. Ainda me lembro da horrível sensação de deixar o amigo em casa e depois voltar sozinho no carro. Era preciso seguir pela avenida do cemitério de um extremo a outro, em meio a um trânsito que impedia o veículo de ultrapassar os quarenta quilômetros horários. O sol que caía que sobre a cidade – o último sol do dia, que vinha após horas e horas de chuva – era irisado, mas muito quente, brutal. Entrava oblíquo no carro e me maltratava o rosto e revolvia em mim aquela imprecisa, mas duradoura, sensação de amor fracassado e vida desperdiçada. Em casa, procurava refúgio em qualquer paz que encontrasse, por mais barata que fosse, e escrevia poemas, alguns até publicáveis, sobre viagens até o mar e o esplendor do mormaço e o peso das folhas de bananeiras encharcadas pelas tempestades.

sábado, 22 de dezembro de 2007

quase ternura

Poderia falar da dureza do meu coração, mas, como é época de festas, falo da ternura que existe nele e que sobe à tona perante animais indefesos, raparigas que almoçam ou vão sozinhas ao cinema, e até comerciantes às portas da falência. Estes últimos parecem estar em todos os lugares: apenas em meu bairro, nos arredores da praça do teatro, há três lojas de roupas que – não sei se por estupidez ou necessidade – continuam com as suas atividades. O primeiro estabelecimento tem um nome tão estranho e pouco comercial que ainda hoje não consegui decorar: é algo como Calopicista ou Capilocista, embora nenhuma dessas palavras conste no dicionário ao qual costumo recorrer. O referido comércio abriu as suas portas há dois anos e nunca vi um cliente lá dentro. Há uma vitrine e os manequins que a habitam usam roupas que ficariam bem naqueles que pretendem viajar até o litoral. Para além dos manequins, há uma escrivaninha de repartição pública e, atrás dessa escrivaninha, uma mulher costuma dedicar os seus dias à prática do crochê. Em outras tardes, uma mulher mais jovem perambula por entre as roupas expostas com uma criança no colo. Ademais, todo o quarteirão em que fica a loja é melancólico. Ao lado, existe um asilo e, durante o crepúsculo, é comum ver dezenas de velhos respirando a fresca do entardecer afundados nas suas cadeiras de rodas. Numa das esquinas fica uma sorveteria que, talvez por um motivo de economia, só acende as suas luzes no momento em que as sombras da tarde assumem a densidade das trevas noturnas. Do outro lado da rua fica a igreja, diante da qual um pipoqueiro tem uma relação esquizofrênica com as pombas, ora alimentado-as com milho, ora recebendo-as com pedradas.
A segunda loja nem sequer tem nome e se presta ao comércio de roupas usadas. A tática usada pela dona do estabelecimento, para atrair clientes, está mais próxima da mendicância do que das práticas comerciais. Ela espera passar diante da loja uma pessoa e a aborda e, suplicante, diz que, apesar de as roupas serem velhas, são de boa qualidade e não aceita negativas como respostas, de modo que o eleito não escapa sem ser rude ou sem, ao menos, conhecer a loja. Por sua vez, o terceiro estabelecimento pretende ser um Calopicista-Capilocista com mais classe, cuja elegância já pode ser lida na fachada: Sursum Corda. Acredito que o emprego do latim seja um provável vestígio dos conhecimentos adquiridos durantes os anos em que a proprietária da loja freqüentou cursos pré-vestibulares, período no qual fomos colegas de classe. Este passado em comum não deixa de ser uma relação de parentesco, o que torna ainda mais aflitiva, ante os meus olhos, a queda do Sursum Corda. Não que tenhamos sido amigos. Ela nunca esteve mais próxima de mim do que uma dessas estrelas que, em noites de inverno, irradiam um fulgor frio e esverdeado. Uma vez deixada no passado, às vezes acontecia de eu me lembrar com encanto e imprecisão dos seus longos e ondulados cabelos castanhos, a pele mais morena do que pálida, modos que se pretendiam aristocráticos ao andar, falar, talvez até ao se entregar aos homens – e ao vê-la após anos, mais do que o enervante reencontro com uma beleza que deveria permanecer nos mausoléus da memória, percebo que tal beleza permaneceu apenas para esmorecer aos poucos, e, ainda mais do que isso, percebo que sou reconhecido por esse encanto crepuscular e muitas vezes, ao passar diante da loja, sinto-me como um personagem de Dostoiévski que está exilado na Alemanha ou França. Ele passeia por uma cidade e observa o desespero de uma russa linda, nobre, e, no entanto, falida. A jovem percebe que está diante de um russo, nota que ele também sofre dos nervos, que não tem consigo resistir às vigarices dos alemães ou franceses, e quase se joga aos pés do homem. Paizinho, me ajuda, paizinho, e o homem, guiado pelo sonambulismo de quem se desloca entre dois delírios apenas diz Coração ao Alto, minha menina, Coração ao Alto, não posso dispor de nem sequer uma moeda. Assim segue caminho, retomando a lucidez alguns metros adiante, ou melhor, retomando uma lucidez que se situa entre o desespero, a impotência e o escárnio. Olha para trás. A mulher desapareceu, mas, diante de uma outra loja, um velho corcunda, vestido de vermelho, dança e faz caretas com o rosto na tentativa de atrair clientes. Eles estão tendo o que merecem, vocifera alguém com um senso de justiça mais próximo do divino. O russo concorda e, tentando rir, inicia um solilóquio que vai desencadear mais febre e delírio. Sim, eles estão tendo o que merecem.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

balões de pensamentos

Durante anos pensei que o meu gosto por perambular pela cidade viera de filmes como A Doce Vida, A Noite, O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, ou até Depois de Horas – histórias de sujeitos fadados à errância e à contemplação. Mas a verdade é que, mentindo para mim mesmo, fingia ignorar que as caminhadas pela cidade haviam tido início bem antes de eu assistir aos filmes citados. Contava onze ou doze anos quando comecei a voltar andando da escola. Destes primeiros passeios, lembro-me do aroma de biscoitos de polvilho que se erguia acima dos telhados de um fábrica de bolachas. Alguns quarteirões adiante – na mesma rua, a última construção antes do rio – funcionava um bar que exalava um nauseante cheiro de frango cozinhado na gordura pobre. Neste bar, dentro da obscuridade que se dissolvia numa claridade vespertina e poeirenta, homens bebiam e jogavam bilhar.

Não mudei o caminho até os anos do colegial, quando, após um assalto ocorrido nas imediações da fábrica de cerveja, o pai me aconselhou a voltar pelas ruas do centro. Não sei se a luz também envelhece – talvez as reminiscências estejam influenciadas pela memória de uma tarde em junho, um desses dias menos frios do inverno, quando o céu permanece sem nuvens e a luminosidade que desce não agride o rosto – mas lembro de caminhar por ruas muito claras nas primeiras vezes que regressei da escola pelo centro. No último ano do colegial eu e um amigo íamos até a Praça do Teatro, sentávamos num banco e lá permanecíamos por horas, rindo dos homens que víamos passar. Numa tarde este meu amigo tinha dinheiro e resolvemos gastá-lo em cerveja. Foram poucas garrafas, mas a minha inexperiência de então causou uma respeitável vertigem, e na hora de volta para casa só conseguia manter o equilíbrio se andasse em linha reta, muito depressa, e nunca parando. Uma façanha impossível de ser realizada no tumulto das ruas da cidade velha.

No primeiro dia de aulas no cursinho, ao descobrir que só sairia da escola após as sete da noite – e com vergonha de pedir que o pai viesse me buscar -, fiquei tão inseguro que por pouco não entrei em desespero. Uma garota bonita (robusta além da conta, mas bonita) notou a minha apreensão e me ensinou – a mim, que estava tão viciado nas caminhadas que desconhecia qualquer outro meio de ir do Ponto A ao Ponto B – que ônibus deveria pegar. Hoje percebo que ela tinha por mim um encantamento maternal, e um mínimo de habilidade com raparigas poderia transformar esse enlevo em tensão e depois triunfo sexual. Por fim o meu sangue aristocrático falou mais alto e, como um lorde passeia pelas floridas alameadas do seu castelo após caçar faisões, resolvi desbravar as ruas da cidade velha. Logo passei a acreditar que, quanto mais tarde voltava para casa, mais incríveis e singulares eram as minhas aventuras.

Este é o prelúdio da história dos passeios pela cidade. Quando pensava nisso, apontava como causadores dos meus anseios a inquietação juvenil aliada à influência de filmes italianos dos anos 50 e 60. Como disse no começo, a causa não é esta, e só fui perceber o meu engano quando, meses atrás, reencontrei uma caixa velha gibis – quase todos do Homem-Aranha – comprados durante a infância. Nestas aventuras, o que mais me fascinava (ainda fascina) era observar a solitária e insólita rotina daquele herói que vivia num miserável apartamento na Rua Chelsea. Vilões como o Escorpião e o Doutor Octopus eram temíveis, e, quando apareciam, só podiam ser derrotados após um grandioso embate - no entanto, as minhas aventuras prediletas eram aquelas que mostravam o aracnídeo pulando de telhado em telhado durante toda a madrugada; em todos os quadrinhos os balões de pensamentos (uma técnica narrativa que não vejo mais) revelavam as angústias e as confusões do herói, sendo que, entre uma ponderação e outra, ora o Homem-Aranha (no alto de um prédio) observava o frenesi de Nova York, ora enfrentava batedores de carteira.
Hoje as aventuras já não seguem este padrão. A política de tolerância zero praticamente erradicou os batedores de carteiras das ruas de Nova York (e junto com estes pequenos marginais, ficaram abolidos as ruas sujas, a luz néon brilhando na fachada de hotéis ou restaurantes chineses, o nevoiro que tomava conta dos becos) e o Homem-Aranha já não é um solitário: está casado e agora luta na companhia de outros heróis (e todos, good guys e bad guys, o chamam pelo nome: não é mais maldito aracnídeo, é Peter), livrando o planeta de ameças mais aterradoras que o aquecimento global. Ao pensar nisso, a melancolia que experimento não é diferente da que sinto quando percebo que andar por aí já não é tão divertido. Envelhecer é triste, mas ao menos oferece o conforto de ser uma tristeza necessária, mas qual a necessidade de lançar um herói nas garras de um ocaso durante o qual ele deixa de ser um herói? Quantos Césares fui (Na alma, e com alguma verdade; / Na imaginação, e com alguma justiça; / Na inteligência, e com alguma razão) , diz aquele poema de Álvaro de Campos, e talvez só seja possível subir à altura dos césares andando solitário por ruas manchadas de néon – quando os inimigos não são mais do que batedores de carteiras e com um levíssimo (passível de desgarrar-se a qualquer instante, perdendo-se nas distâncias celestiais) balão de pensamento pairando acima de nossas enfadonhas existências.

sábado, 8 de dezembro de 2007

o cheiro do napalm pela manhã

Talvez aquele ano não tenha sido o pior de todos. Talvez tenha sido apenas o ano da derrota ou, antes, o ano em que vivi segundo os padrões de uma vida impossível: li muito, escrevi mais ainda, e no resto do tempo vagava pela cidade, entre a insônia da carne e o sonambulismo do espírito. Por isso não me esqueço das garotas que conheci nesses meses. Eu tinha o corpo aberto para qualquer uma delas, e talvez estivesse disposto a pagar qualquer preço por um amor, ou ao menos por sua sombra, que não daria em nada. Depois vieram os meses da regeneração, da vergonha também. Como foi possível viver daquele jeito? Como foi possível passar tantas manhãs e tardes sem estudar? Como foi possível ter o espírito marcado pela promiscuidade e escapar com a carne incólume? E em meio a isso, em meio ao desprezo pelas excentricidades de outrora, colhi o amor ou ao menos a sua sombra. Foi brando, como se o próprio presente fosse visto através das névoas de uma futura saudade, como se toda a cidade (todos os prédios, e as árvores, e as luzes - tudo isso, menos a carne) tivesse se tornado incorpórea, como se eu habitasse o corpo de um morto e perdurasse no crepúsculo por mais alguns minutos. E então também isso passou e tudo se assentou assim em meu espírito: um ano ruim, um ano bom, e o ano presente, embora o agora também fosse cercado por fronteiras incertas, vaporosas. Foi assim que, quinta-feira, aproveitei a noite para dar um passeio pela cidade. Quando a testa ficou úmida de suor - e quando o vento gelado da noite tocou esse suor e trouxe uma sensação de frescor - foi como se eu movesse dentro dos limites daquele ano que ficou marcasdo como ruim, o pior de todos, mas agora me sentia alegre e queria percorrer todas as velhas esquinas e entrar em todos os velhos lugares. Até me lembrei de Bill Kilgore: o tenente-coronel de Apocalipse Now!, aquele que usava chapéu de cowboy e que, ao observar os seus soldados surfando nas ondas de uma praia devastada, aspira o ar da manhã e, com o seu sotaque texano, diz adorar o cheiro do napalm pela manhã. Tem um cheiro de vitória.