segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

balões de pensamentos

Durante anos pensei que o meu gosto por perambular pela cidade viera de filmes como A Doce Vida, A Noite, O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, ou até Depois de Horas – histórias de sujeitos fadados à errância e à contemplação. Mas a verdade é que, mentindo para mim mesmo, fingia ignorar que as caminhadas pela cidade haviam tido início bem antes de eu assistir aos filmes citados. Contava onze ou doze anos quando comecei a voltar andando da escola. Destes primeiros passeios, lembro-me do aroma de biscoitos de polvilho que se erguia acima dos telhados de um fábrica de bolachas. Alguns quarteirões adiante – na mesma rua, a última construção antes do rio – funcionava um bar que exalava um nauseante cheiro de frango cozinhado na gordura pobre. Neste bar, dentro da obscuridade que se dissolvia numa claridade vespertina e poeirenta, homens bebiam e jogavam bilhar.

Não mudei o caminho até os anos do colegial, quando, após um assalto ocorrido nas imediações da fábrica de cerveja, o pai me aconselhou a voltar pelas ruas do centro. Não sei se a luz também envelhece – talvez as reminiscências estejam influenciadas pela memória de uma tarde em junho, um desses dias menos frios do inverno, quando o céu permanece sem nuvens e a luminosidade que desce não agride o rosto – mas lembro de caminhar por ruas muito claras nas primeiras vezes que regressei da escola pelo centro. No último ano do colegial eu e um amigo íamos até a Praça do Teatro, sentávamos num banco e lá permanecíamos por horas, rindo dos homens que víamos passar. Numa tarde este meu amigo tinha dinheiro e resolvemos gastá-lo em cerveja. Foram poucas garrafas, mas a minha inexperiência de então causou uma respeitável vertigem, e na hora de volta para casa só conseguia manter o equilíbrio se andasse em linha reta, muito depressa, e nunca parando. Uma façanha impossível de ser realizada no tumulto das ruas da cidade velha.

No primeiro dia de aulas no cursinho, ao descobrir que só sairia da escola após as sete da noite – e com vergonha de pedir que o pai viesse me buscar -, fiquei tão inseguro que por pouco não entrei em desespero. Uma garota bonita (robusta além da conta, mas bonita) notou a minha apreensão e me ensinou – a mim, que estava tão viciado nas caminhadas que desconhecia qualquer outro meio de ir do Ponto A ao Ponto B – que ônibus deveria pegar. Hoje percebo que ela tinha por mim um encantamento maternal, e um mínimo de habilidade com raparigas poderia transformar esse enlevo em tensão e depois triunfo sexual. Por fim o meu sangue aristocrático falou mais alto e, como um lorde passeia pelas floridas alameadas do seu castelo após caçar faisões, resolvi desbravar as ruas da cidade velha. Logo passei a acreditar que, quanto mais tarde voltava para casa, mais incríveis e singulares eram as minhas aventuras.

Este é o prelúdio da história dos passeios pela cidade. Quando pensava nisso, apontava como causadores dos meus anseios a inquietação juvenil aliada à influência de filmes italianos dos anos 50 e 60. Como disse no começo, a causa não é esta, e só fui perceber o meu engano quando, meses atrás, reencontrei uma caixa velha gibis – quase todos do Homem-Aranha – comprados durante a infância. Nestas aventuras, o que mais me fascinava (ainda fascina) era observar a solitária e insólita rotina daquele herói que vivia num miserável apartamento na Rua Chelsea. Vilões como o Escorpião e o Doutor Octopus eram temíveis, e, quando apareciam, só podiam ser derrotados após um grandioso embate - no entanto, as minhas aventuras prediletas eram aquelas que mostravam o aracnídeo pulando de telhado em telhado durante toda a madrugada; em todos os quadrinhos os balões de pensamentos (uma técnica narrativa que não vejo mais) revelavam as angústias e as confusões do herói, sendo que, entre uma ponderação e outra, ora o Homem-Aranha (no alto de um prédio) observava o frenesi de Nova York, ora enfrentava batedores de carteira.
Hoje as aventuras já não seguem este padrão. A política de tolerância zero praticamente erradicou os batedores de carteiras das ruas de Nova York (e junto com estes pequenos marginais, ficaram abolidos as ruas sujas, a luz néon brilhando na fachada de hotéis ou restaurantes chineses, o nevoiro que tomava conta dos becos) e o Homem-Aranha já não é um solitário: está casado e agora luta na companhia de outros heróis (e todos, good guys e bad guys, o chamam pelo nome: não é mais maldito aracnídeo, é Peter), livrando o planeta de ameças mais aterradoras que o aquecimento global. Ao pensar nisso, a melancolia que experimento não é diferente da que sinto quando percebo que andar por aí já não é tão divertido. Envelhecer é triste, mas ao menos oferece o conforto de ser uma tristeza necessária, mas qual a necessidade de lançar um herói nas garras de um ocaso durante o qual ele deixa de ser um herói? Quantos Césares fui (Na alma, e com alguma verdade; / Na imaginação, e com alguma justiça; / Na inteligência, e com alguma razão) , diz aquele poema de Álvaro de Campos, e talvez só seja possível subir à altura dos césares andando solitário por ruas manchadas de néon – quando os inimigos não são mais do que batedores de carteiras e com um levíssimo (passível de desgarrar-se a qualquer instante, perdendo-se nas distâncias celestiais) balão de pensamento pairando acima de nossas enfadonhas existências.

4 comentários:

d. chiaretti disse...

Não sei se fiquei velho demais, mas acho que a humanidade nos gibis da MArvel se perdeu em algum ponto...

mississipi disse...

fui um ávido colecionador de gibis da infância ao começo da adolescência, e voltei a comprar em meados do ano passado. também não sei se estou velho demais, mas já não é tão divertido e só continuo comprando motivado por um senso de organização e coleção que não se justifica. o evento Guerra Civil, por exemplo, é de uma bobeira sem fim. mas há uma exceção: as aventuras do Demolidor. Ed Brubaker, o roteirista responsável pelo título, consegue imprimir um ritmo noir muito empolgante.

hfm disse...

Já o guardei para ler com tempo. Fico contente de o (re)encontrar. Fazem falta os poemas. Um abraço

Paulo Bono disse...

santa aranha, Mississipi. você escreve pra caralho, meu irmão.
sou seu fã, cara.

abraço