sábado, 22 de dezembro de 2007

quase ternura

Poderia falar da dureza do meu coração, mas, como é época de festas, falo da ternura que existe nele e que sobe à tona perante animais indefesos, raparigas que almoçam ou vão sozinhas ao cinema, e até comerciantes às portas da falência. Estes últimos parecem estar em todos os lugares: apenas em meu bairro, nos arredores da praça do teatro, há três lojas de roupas que – não sei se por estupidez ou necessidade – continuam com as suas atividades. O primeiro estabelecimento tem um nome tão estranho e pouco comercial que ainda hoje não consegui decorar: é algo como Calopicista ou Capilocista, embora nenhuma dessas palavras conste no dicionário ao qual costumo recorrer. O referido comércio abriu as suas portas há dois anos e nunca vi um cliente lá dentro. Há uma vitrine e os manequins que a habitam usam roupas que ficariam bem naqueles que pretendem viajar até o litoral. Para além dos manequins, há uma escrivaninha de repartição pública e, atrás dessa escrivaninha, uma mulher costuma dedicar os seus dias à prática do crochê. Em outras tardes, uma mulher mais jovem perambula por entre as roupas expostas com uma criança no colo. Ademais, todo o quarteirão em que fica a loja é melancólico. Ao lado, existe um asilo e, durante o crepúsculo, é comum ver dezenas de velhos respirando a fresca do entardecer afundados nas suas cadeiras de rodas. Numa das esquinas fica uma sorveteria que, talvez por um motivo de economia, só acende as suas luzes no momento em que as sombras da tarde assumem a densidade das trevas noturnas. Do outro lado da rua fica a igreja, diante da qual um pipoqueiro tem uma relação esquizofrênica com as pombas, ora alimentado-as com milho, ora recebendo-as com pedradas.
A segunda loja nem sequer tem nome e se presta ao comércio de roupas usadas. A tática usada pela dona do estabelecimento, para atrair clientes, está mais próxima da mendicância do que das práticas comerciais. Ela espera passar diante da loja uma pessoa e a aborda e, suplicante, diz que, apesar de as roupas serem velhas, são de boa qualidade e não aceita negativas como respostas, de modo que o eleito não escapa sem ser rude ou sem, ao menos, conhecer a loja. Por sua vez, o terceiro estabelecimento pretende ser um Calopicista-Capilocista com mais classe, cuja elegância já pode ser lida na fachada: Sursum Corda. Acredito que o emprego do latim seja um provável vestígio dos conhecimentos adquiridos durantes os anos em que a proprietária da loja freqüentou cursos pré-vestibulares, período no qual fomos colegas de classe. Este passado em comum não deixa de ser uma relação de parentesco, o que torna ainda mais aflitiva, ante os meus olhos, a queda do Sursum Corda. Não que tenhamos sido amigos. Ela nunca esteve mais próxima de mim do que uma dessas estrelas que, em noites de inverno, irradiam um fulgor frio e esverdeado. Uma vez deixada no passado, às vezes acontecia de eu me lembrar com encanto e imprecisão dos seus longos e ondulados cabelos castanhos, a pele mais morena do que pálida, modos que se pretendiam aristocráticos ao andar, falar, talvez até ao se entregar aos homens – e ao vê-la após anos, mais do que o enervante reencontro com uma beleza que deveria permanecer nos mausoléus da memória, percebo que tal beleza permaneceu apenas para esmorecer aos poucos, e, ainda mais do que isso, percebo que sou reconhecido por esse encanto crepuscular e muitas vezes, ao passar diante da loja, sinto-me como um personagem de Dostoiévski que está exilado na Alemanha ou França. Ele passeia por uma cidade e observa o desespero de uma russa linda, nobre, e, no entanto, falida. A jovem percebe que está diante de um russo, nota que ele também sofre dos nervos, que não tem consigo resistir às vigarices dos alemães ou franceses, e quase se joga aos pés do homem. Paizinho, me ajuda, paizinho, e o homem, guiado pelo sonambulismo de quem se desloca entre dois delírios apenas diz Coração ao Alto, minha menina, Coração ao Alto, não posso dispor de nem sequer uma moeda. Assim segue caminho, retomando a lucidez alguns metros adiante, ou melhor, retomando uma lucidez que se situa entre o desespero, a impotência e o escárnio. Olha para trás. A mulher desapareceu, mas, diante de uma outra loja, um velho corcunda, vestido de vermelho, dança e faz caretas com o rosto na tentativa de atrair clientes. Eles estão tendo o que merecem, vocifera alguém com um senso de justiça mais próximo do divino. O russo concorda e, tentando rir, inicia um solilóquio que vai desencadear mais febre e delírio. Sim, eles estão tendo o que merecem.

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