quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

janeiro

Se me lembro de janeiro, lembro-me daquelas tardes de chuva que vieram após um mês de dezembro especialmente luminoso. Na verdade, o ano anterior, do começo ao fim, fora cravejado de luzes e triunfos, mas agora – chegado o ano novo – a rapariga que me acompanhara em tais conquistas descia ao mar e eu nem sequer suspeitava que nunca regressaria. Nos primeiros dias, ainda estive tomado pelo enlevo e pelo perfume do amor. A solidão inicial teve como marca longos passeios pela cidade, pois, se me lembro bem, chovia até às quatro ou cinco da tarde; depois disso nuvens estacionavam sobre os prédios, e por vezes era como caminhar à sombra de um muro onde floresciam ervas suaves e olorosas (mal sabia eu que, à sombra dos jazigos, também germinavam flores tão perfumadas quanto). Durante os passeios, andava por ruas e praças cobertas por pétalas-galhos-folhas arrancados durante as tempestades, e quase não conseguia ouvir o ecoar dos meus próprios passos. Procurava manter o espírito e, sobretudo, o corpo longe dos devaneios, embora ambos tenham me traído um par de vezes. O espírito me atraiçoou quando, durante uma caminhada, tive a suspeita de que a rapariga não descera ao mar, de que continuava na cidade, e, a cada esquina percorrida, sobresaltava-me ante a possibilidade de reencontrá-la. A traição do corpo, por sua vez, veio na esteira de uma confusão decorrente de um jogo de espelhos. Aconteceu durante uma das tardes menos solitárias, quando, na companhia de um amigo, jogava no salão de bilhar da rua santiago. Lá fora chovia aos cântaros e a umidade espalhava-se como mofo no ar, grudando nas paredes e na carne. Na mesa ao lado, um grupo de jovens divertia-se e, entre eles, havia uma miúda que julguei idêntica àquela que fugira de mim. Apenas por isso, a desejei com uma violência criminosa, e foi nesse ponto que os passeios pela cidade começaram a ganhar um aspecto de pesadelo, sobretudo quando não chovia ou parava de chover – aí descia sobre os telhados uma claridade fina e ardente como um chicote, e o mormaço que se erguia ganhava um cheiro de água podre. Quando isso acontecia, o relógio costumava marcar sete, quase oito horas, e eu gostava de passar as noites em casa, afundado na espera. Ainda me lembro da horrível sensação de deixar o amigo em casa e depois voltar sozinho no carro. Era preciso seguir pela avenida do cemitério de um extremo a outro, em meio a um trânsito que impedia o veículo de ultrapassar os quarenta quilômetros horários. O sol que caía que sobre a cidade – o último sol do dia, que vinha após horas e horas de chuva – era irisado, mas muito quente, brutal. Entrava oblíquo no carro e me maltratava o rosto e revolvia em mim aquela imprecisa, mas duradoura, sensação de amor fracassado e vida desperdiçada. Em casa, procurava refúgio em qualquer paz que encontrasse, por mais barata que fosse, e escrevia poemas, alguns até publicáveis, sobre viagens até o mar e o esplendor do mormaço e o peso das folhas de bananeiras encharcadas pelas tempestades.

2 comentários:

Jobove - Reus disse...

very good blog, congratulations
regard from Catalonia Spain
thank you

mississipi disse...

ora, ora... obrigado pela visita, é raro o setembro em montevidéu ter um visitante de países que não falam o português. fiquei feliz.