quarta-feira, 31 de outubro de 2007

falso diário de viagem

1. O mais longe que estive foi ao oeste, e por poucas horas. Primeiro visitei uma igreja devastada por ventanias de terra. Depois fui conhecer o comércio local. Uma caminhada por ruas lamacentas e apinhadas de bancas que vendiam artesanatos, manufaturados ou produtos eletrônicos falsificados. No entanto, o homem que assumira a função de guia nos alertou que era perda de tempo negociar com os camponeses, e ordenou que o condutor do ônibus nos levasse a um mall erguido apenas para abastecer os viajantes. Essa viagem durou pouco mais de duas horas. Às margens da estrada, observei campos cobertos por uma vegetação densa e anônima – apenas árvores e bananeiras aqui e ali. Então nos deparamos com uma construção erguida no meio desse princípio de floresta: um prédio enorme, pesado, quadrado, também sujo por sucessivas ventanias de terra, e, como descobrimos depois, abandonado. O estacionamento ao redor, que poderia abrigar centenas de veículos, não apresentava nem sequer um carro. Nos limites do terreno, um posto policial invadido pelo mato. A solução foi cruzar a fronteira de volta, mas a verdade é que em nenhum momento eu me descobri um estrangeiro. Talvez pelo fato de terem sido em português as poucas palavras trocadas com os nativos.

2. Se a condição do estrangeiro é o encontro com uma língua que não é a materna, então me descobri fora daqui apenas uma vez, e em meu país. Não me lembro qual estado eu cruzava. A viagem iniciara-se logo cedo e já atravessava a tarde quando o ônibus parou num desses restaurantes à beira da estrada. Como naquela manhã em que estive ao oeste, não havia sol; apenas uma claridade escura, densa e sufocante. O restaurante – uma construção baixa, vidraças sujas de terra – estava cercado por morros altos e áridos, de um marrom escarlate. Ao entrar, encontrei o estabelecimento imerso na penumbra e na monotonia. Junto a uma das janelas, um grupo de homens comia. Pairava um cheiro de carne crua e velha, como se eu acabasse de entrar num açougue às vésperas da falência, idéia que pode ter sido sugerida pelas paredes de encardidos azulejos brancos. Pedi uma soda. Alguns ocupantes do ônibus decidiram almoçar, outros beberam café ou aguardente. Eu já saía pela porta do restaurante quando o rapaz atrás do balcão perguntou se eu vinha do sul. Ao sul do norte e ao norte do sul, pensei em responder, mas essa impossibilidade geográfica me soou exagerada, fruto de uma concepção ainda medieval do espaço. Apenas concordei que vinha de um ponto ao sul, ao que o rapazote emendou percebi pela sua palavras.
Saí do restaurante e, lá fora, observando a paisagem, a princípio fiquei orgulhoso da minha maneira de pronunciar as vogais e as consoantes, mas logo me vi encapsulado dentro de uma estranha nudez, talvez pudor. Espantava-me saber que os sons que saíam da minha boca fossem uma extensão física do meu corpo e da minha origem – algo tão evidente, tão irrevolgamente meu como uma cicatriz ou marca de nascença. Até me lembrei de um grupo de espanhóis com quem, dias atrás, dividira uma embarcação. Não conversamos: eles riram entre os deles, eu ri entre os meus, mas em nenhum momento tirei os olhos da espanhola mais jovem; do seu corpo tão igual ao das miúdas que estudavam comigo mas também distinto de qualquer corpo encontrado ou tido por mim. Um corpo diferente porque pensa em outro idioma, porque batizado por outra língua. E se falo assim, a minha carne é assim, o meu sangue é assim. E é como se fosse diferente o sangue e a carne das pessoas que falam diferente; pois os seus corpos parecem ter sido curtidos sob uma luz diversa, não uma uma luz mais bela, mais plena, mais forte, apenas uma luz diversa e distante e (para mim) impossível; e muitas vezes percebo esse impulso animal de querer misturar o meu sangue a um outro apenas porque não é o meu, embora eu também perceba a possibilidade de odiar um homem apenas porque ele nasceu sob outra luz. Não há unidade, não há nem sequer um eixo – podia ter pensado enquanto olhava na direção dos montes encarnados, os olhos feridos pela escura claridade.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Conto: Prelúdio de Um Ano Bom

Nos dois anos durante os quais fui estiagiário do fórum, as únicas tardes bonitas foram as de chuva, sobretudo no primeiro ano, quando ainda estava na secretaria. A mesa ocupada por mim era a pior de todas – ficava bem na frente do balcão dos advogados, de modo que eu era obrigado a atender qualquer um que aparecesse, função que eu exercia com timidez. O consolo é que, nas tardes de pouco movimento, bastava girar sobre o eixo da cadeira para me deparar com uma janela que se estendia por quase toda a parede, e esta parede era um mirante para a praça que ficava em frente ao fórum, um lugar simples, com apenas algumas árvores, um chafariz em ruínas, um parque para crianças igualmente desolado, e arbustos floridos com pétalas pequenas das mais diversas cores. Nas tardes de chuva, quando o som calmo e abafado da água deslizava sobre as vidraças – e quando a luz vespertina escoava ao longe, acima das árvores, na distância do céu de nuvens brancas – o tédio do trabalho parecia remido pela visão daquilo que, às vezes, me parecia ser um descomunal jardim de inverno. E muitas vezes nem era preciso contemplar: bastava ouvir o frêmito da água, bastava respirar o cheiro de terra encharcada que, não raro, conseguia esgueirar-se repartição adentro.

No segundo ano, durante a época de chuvas, eu já estava no gabinete. Uma sala pequena. Além de mim, contava com apenas dois servidores e, à medida que entardecia, não era raro eu ficar sozinho durante longos minutos. O gabinete dava para as salas dos juízes e também para a sala de audiências. Os juízes nunca apareciam, mas era comum, no final do expediente, escutar uma mulher trabalhando na sala de audiências. Ela vinha da secretaria com uma pilha de processos, sentava-se diante do computador e começava as preparações para o dia seguinte. Era uma mulher bonita, magra, com pouco mais de trinta anos, de cabelos escuros, pele clara, olhos muito negros e fundos, vestida com aquela sobriedade vulgar que imperava entre as senhoras que trabalhavam no prédio – enfim, uma mulher cuja carne exalava um perfume doce e cujo hálito, até o final do dia, traía vestígios do almoço feito às pressas em algum restaurante nas imediações do fórum. Éramos corteses e, eventualmente, até simpáticos um com o outro, mas não posso dizer que a sua presença, na sala ao lado, suavizava as horas finais do expediente, pelo contrário; em muitas ocasiões era como ter a carne e o sangue e a órbita dos olhos esmagados pela peso de uma avidez demoníaca, quase insuportável. O consolo, tal como já fora nos tempos da secretaria, eram as tardes de chuva; o inegostável frêmito; a umidade que aos poucos desprendia-se das paredes e até alterava a percepção das horas. Então eu caminhava até a janela e observava a paisagem, que não era mais a da praça que, sob as sombras de muitos crepúsculos, me parecera inundada, submersa na água que caía em torrentes: agora contemplava um estacionamento, a imobilidade da sua rotina, e, ao longe, a luz em fuga, de uma opacidade que às vezes quase assumia um brilho dourado.

Numa tarde de sexta, não quis voltar para casa. No caminho até o carro, cruzei a praça. Chovera até minutos atrás e agora, encrespado ao anoitecer, descia um resto de sol. As árvores altas – curvadas sobre a abandono do chafariz e do parque infantil cujos brinquedos recendiam a ferrugem – transmitiam a idéia de um abóbada também arruinada, mas dentro da qual havia paz e silêncio.

Liguei o carro e tomei a direção do Wall Mart que ficava a poucos minutos do fórum. Passei pela entrada principal e, ao notar a enorme quantidade de veículos no estacionamento, tomei um desvio – contornando o parque de diversões que fora erguido nos limites do terreno; descendo um atalho que corria paralelo ao fundos de um hotel chamando Sleep In; passando ao largo de um terreno baldio que se estendia até a rodovia que levava para a capital (era o começo da noite e eu podia ver, na estrada, as luzes vermelhas nas traseiras dos veículos que iam embora e, no meio do terreno baldio, um quadrado de luzes amarelas assinalava um heliporto que talvez nunca tenha sido usado); por fim chegando a uma parte pouco conhecida do estacionamento, com muitas vagas vazias.

A doçura de antes dissipara-se, e a hipocondria que a provocara também estava fraca, embora nada fosse capaz de aniquilá-la por completo e, pior, quase tudo a instigava, quase tudo a alimentava. Os ventos finos e cortantes, por exemplo, tinham a função de trazer à tona a exaustão física, um mal estar na carne do rosto. Do cansaço surgia a idéia de abandono irredimível e inesgotável, um quase anseio de morrer ou de, pelo menos, não pertencer a uma realidade física; não ser um corpo que necessita de cuidados e que levanta apetites o tempo todo; um corpo que morre porque tem que morrer mas que, antes, precisa ser mantido saudável, limpo, fértil, puro, desejável, belo; um corpo que, não raras vezes, constitui um fardo pesado demais. Não mais do que isso. Um fardo.

Tinha estacionado o carro na parte mais baixa do conglomerado de lojas, em frente a um lugar que vendia produtos para animais e cuja fachada exibia, num néon berrante (e esta luz refletia-se nas poças que tinham se formado durante as chuvas da tarde e que ainda agora tremeluziam, devido à garoa que voltara a cair), a imagem de um cão risonho. Enquanto caminhava até o mall, às vezes olhava para a rodovia e mais além, para os campos que mesclavam-se às trevas noturnas. Esta solidão tão mentirosa – pois era preciso um grande esforço para ignorar os rugidos que vinham do monumental dinossauro do parque de diversões, e o rumor dos carros, e aquele murmúrio que era a soma das centenas de vozes e corpos humanos que, como uma torrente, moviam-se nos corredores acima de mim – davam um ar mais solene, se é que isso pode ser dito a respeito de qualquer emoção humana, à tristeza e ao cansaço. Às vezes era possível distinguir; ou melhor, às vezes era possível imaginar, no ar entrecortado de ruídos, os acordes de alguma canção bonita, ou a voz e o riso de uma garota de quem um dia gostamos muito, ou até versos que, embora nunca declamados, ganham sonoridade e corpo na memória. Às vezes Kávafis, ou Eliot, ou Bandeira, ou Eugênio de Andrade, ou Rexroth.

A idéia de solidão aumentou enquanto subia as escadas rolantes e olhava, através de uma opaca vidraça, dezenas de bicicletas e esteiras ergométricas, todas vazias, dispostas no interior de uma academia ainda inacabada. Quando alcancei os corredores, o cansaço desapareceu, e, ao notar raparigas bonitas aqui e ali, voltou a animação. Algumas caminhavam solitárias; traziam sacolas de lojas caras e paravam diante das vitrines, com uma expressão ora vaga, ora introspectiva, arrumavam o cabelo que lhes caía pelo rosto, e então seguiam com um passo vagaroso, quase indolente, quase sonâmbulo. Sabia que, aos olhos dessas meninas, eu era não passava de um arremedo de bárbaro – trajava calça e camisa que, apesar de boas para o trabalho no fórum, nem de longe eram sinais de prosperidade. E em meu rosto devia haver (talvez ainda haja) qualquer expressão de desvario, uma excitação nervosa ou uma timidez que resultavam do constante sentimento de inadequação. Portanto sempre achei sedutora essa autonomia, essa solidão quase aristocrática de algumas mulheres diante das vitrines das lojas mais elegantes. Eu as via com seus olhos glaucos, e cabelos loiros ou de um castanho que sob o sol fica vermelho ou cor de mel, e pele nívea, e nariz fino. Todas serão erva, dizia o meu instinto mais terrível, mas vinha outro instinto, este mais calhorda, e falava da necessidade de se deitar sobre a erva mais bonita, a relva dos píncaros, onde a luz parece imorredoura e onde adejam borboletas azuis. E se depois quiserem arrancar a cabeça de Julien Sorel, tanto melhor.

Planejara ir à livraria e depois assistir a algum filme. Na livraria vi o conhecido rosto de uma garota que fora minha colega nos tempos em que pretendi estudar cinema. Eu a chamei e começamos a conversar. Há anos não a via e, além de não saber o que esperar, ainda existia em mim aquela sensação de ter sido um traidor da causa artística e não apenas isso: fora eu o único a abandonar aquela família onde todos almejavam aprender sobre Murnau e Resnais e Wenders; o único a abandonar aquela universidade encravada no interior de um bosque de eucaliptos; o campus da, para mim, sempre melancólica faculdade de cinema – um lugar que, a cada palavra trocada com a antiga colega, ergueu-se da memória: lembrei-me dos crepúsculos, dos dolorosos ocasos que pareciam pertencer a outro continente, sobretudo na hora em que o gelado vento alcançava a névoa que subia do lago, toldando o céu e as últimas horas do dia. Então era até possível acreditar que, nos alojamentos, vivesse uma linda miúda de nome Dawn ou Aube, e, durante as noites de frio intenso, era quase real a sensação de caminhar pelos corredores de um castelo perdido na Floresta Negra e que antes abrigara Rilke e as suas elegias. Mas não há névoa, não há bosque de eucaliptos que cesse a algazarra das cigarras em novembro e dezembro, e quando isso acontecia – quando a luz descia límpida e, mais límpida ainda, deslizava sobre as águas do açude – despertávamos para o nosso país e muitas vezes era como despertar para a própria mortalidade, seja da carne, seja do espírito. O lago rebrilhava e, no entanto, era como mirar uma adiada sepultura.

Ela tinha os olhos negros. Os cabelos, também escuros, eram revoltos, crespos como os de uma judia. O corpo, pequeno e esquálido, transmitia uma idéia de doença, de desespero íntimo. Por mais que olhasse, não podia acreditar – nem sequer por um segundo – que a sua pele recendesse a sol; que os seus instintos, libertos, fossem a vitória da carnalidade; como se o corpo há muito tivesse desistido de ser um corpo.

Mas podia ser que tais impressões fossem resultado das recordações que eu tinha dela. Lembrava-me, por exemplo, de uma noite em que, involuriamente, eu fora espectador de sua tristeza e ruína. Nessa noite, eu tinha ido embora mais cedo da aula para assistir a um importante jogo de futebol. Conseguira carona com Ezequiel, um outro colega de classe, um sujeito que, na universidade, era tão deslocado quanto eu. Justo na hora em que entrávamos no carro ela apareceu, também à procura de uma boléia. E começou a chorar quando o carro estacionou diante do prédio onde vivia. Falava da depressão, de obsessões amorosas, dos medicamentos, de sua completa disfuncionalidade, de não conseguir acordar e comer e estudar e trepar, e então Deus quis salvá-la. Deus começou a falar pela boca de Ezequiel, e – quando ele quer salvar alguém, quando quer que as suas palavras saiam da boca de um dos seus servos – as palavras são excessivas para abrir ou pelo menos anestesiar (pela exaustão) o coração estiolado. O resultado disso é que a conversa durou horas. Deus existe e é misericordioso; Deus ou não existe ou é a implacabilidade da morte e o fracasso de tudo o que é humano; o suicida é o mais orgulhoso dos homens; não há ato que demande mais humildade que pôr fim a própria vida; a fé salva; a crença torna o homem indigno: enfim, estes foram apenas alguns dos antagonismos que pontuaram aquela conversa sem lágrimas. Apenas raiva de um lado, e, do outro, a lógica sagrada e terna.

Apesar de não ter tomado parte do diálogo, a partir daquela noite nos tornamos íntimos. Eu chegava na segunda e ela perguntava como fora o final de semana; eu falava dos lugares a que tinha ido e às vezes até aludia a alguma rapariga e depois pedia conselhos; ela ria das minhas confusões – uma risada bonita, que causava assombro na medida em que parecia alheia àquele esquálido e vulnerável e desesperado amontoado de carne e ossos – e o que dizia não era diferente do que outras meninas me diriam.

Contudo, não demorou e logo o riso dela perdeu aquela aura sublime que o havia consagrado. Agora este mesmo riso (ainda sonoro, ainda bonito) surgia como um esforço, um gesto de mendicância e, após poucas semanas, tudo nela revelou-se exatamente isso: mendicância. Lembro-me de uma noite em que, ao chegar a uma festa, ela me abraçou. Perceber os contornos de seu corpo contra o meu foi agradável: tinha os seios bem salientes sob o tecido da blusa e a rigidez da carne guardava vestígios de uma idade pubescente. No entanto, mais uma vez fora uma mentirosa primeira impressão: notei – à medida que o abraço demorava-se a ponto de se tornar sufocante – que esta rigidez não era nada mais do que um sinal de crispação: o ódio da carne pela própria carne e o asco do corpo pelo próprio corpo. E tudo nela, todas as suas palpitações e tremores pareciam obedecer a um ritmo secreto, como se ela tivesse dois corações. O primeiro igual a todos, impulsionando o sangue por todo o organismo – mas além desse coração parecia haver um outro, pulsando nas sombras do primeiro, e que dava fluxo a uma ânsia cada vez mais alucinada de acabar com tudo. Era este coração secreto que nutria o seu corpo e, se isso acontecia, também era natural concluir que ela fosse dúplice em todos os aspectos. Percebi isso numa tarde em que dormia ao meu lado. Apesar do semblante pacífico e da vulnerabilidade e desmaiada lascívia daquela corpo aberto para mim, havia algo mais, como se uma segunda epiderme recobrisse a primeira, e a mesma impressão tive ao mirar os cabelos, o rosto, a boca, os ombros, os contornos dos seios: tudo parecia germinar a tragédia, toda a carne parecia crispada em virtude de uma condenação prematura e inevitável. Em outras palavras: ela era um corpo, e este corpo cobiçava como qualquer outro, a diferença é que tinha a consciência do fracasso do desejo e de qualquer outro anseio humano. Então como compreender a mendicância? Como compreender que esse corpo continuasse se oferecendo? E como possuir e fecundar e gozar de uma carne que não era mais do que a desolada e fantasmagórica voz da terra calcinada?

No mês seguinte abandonei a universidade, uma decisão tomada no curso de uma madrugada de insônia, enquanto ela dormia ao meu lado. Não é raro a mendicância ter, como paga, a covardia. Foi um modo de conter os meus instintos mais perversos; de escapar das pulsões sádicas que me inspiravam os mergulhos naquela pele dolorosa e viciante; naquele corpo que se abria, que se entregava até o aniquilamento, e que encontrava paz, calma e até disciplina na agonia física; um corpo que, febril, era raiva e que, ao esfriar, era a antecipação da morte, a esterilidade de tudo, a impotência; e madrugada após madrugada a sensação da carne (feminina, sonâmbula) dormindo ao meu lado: a respiração pesada, o hálito quente, doce e mórbido que dela se desprendia; e em mim também a raiva, crescente, a raiva como naquele poema de Dylan Thomas, a raiva contra a luz que se quebra, a raiva por possuir um corpo que, desperto, tudo o que fazia era encolher-se de medo. Não consigo comer, não consigo estudar, não consigo trepar. Era o que ela gostava de dizer, e após um tempo percebi que tinha razão: não trepávamos, não havia entre nós qualquer foda, qualquer coisa que remetesse ao amor ou à sua tentativa, ainda que falhada. O amor não podia ser tamanha carnificina.

Depois disso, Aurora, em duas ou três ocasiões, veio até a minha cidade – a fala desesperada, o corpo mais seco do que nunca, os olhos cadavéricos, o rosto sulcado, os cabelos de judia, mas bastava abraçá-la, bastava ter o corpo dela contra o meu para se assombrar com as possibilidades oferecidas e, logo em seguida, negadas. Tudo era triste, inútil, estéril. Até que um dia ela deixou de vir. Agora, segundo os relatos que me chegavam, o centro de suas obsessões era Ezequiel. Uma relação também raivosa, miserável, falhada, e que veio a deixar um filho abortado. Ao saber disso, o que primeiro me espantou foi existir fertilidade em sua carne. Mas poderia ter sido um milagre. Talvez Deus – que antes fora a voz de Ezequiel – tivesse chegado ao cúmulo de fecundar aquele corpo que expulsava de si qualquer início de vida.

Agora ela vai dar cabo de tudo, pensei comigo mesmo após estas primeiras ponderações, sem saber até que ponto a criança não nascida aumentara a sua tristeza. Ezequiel também tinha a abadonado e, ciente disso, até pensei em voltar para o bosque dos eucaliptos. Considerava – como um casmurro às avessas – que a criança pudesse ser minha e até encontrava evidências que confirmassem tais suspeitas. No entanto, ainda um arremedo de casmurro, toquei os estudos adiante; aprendi as leis numa cidade que nada tinha de Coimbra.

Isso não quer dizer que, nos anos seguintes, eu não tenha retornado. A primeira dessas visitas ocorreu durante um mês de dezembro. Recordo que, naquelas semanas, chovia muito todos os dias. Foi a primeira vez em que, durante a viagem, peguei fortes temporais durante o trajeto. Acostumara-me a olhar pela janela do ônibus e contemplar, até onde a vista alcançava, as plantações de café, cana de açucar, e também os sítios nunca cultivados. Mas naquela viagem o cenário estava mudado. O céu parecia baixo e a vastidão dos caminhos perdia-se numa monotonia manchada de cinza. Quando cheguei à universidade, contudo, veio um resto de sol. Feixes de luz clara desciam por entre os eucaliptos; a luz mais límpida e fulgurante que já havia encontrado; e a mais crepuscular também; morrendo depressa pois o vozerio das cigarras era onipresente e porque o calor começava a se tornar insalubre, com um odor de água morta que subia do lago. Os velhos colegas foram amáveis. Quando a vi e a chamei, houve novo abraço e por um instante foi bom – ela ainda tinha os seios salientes sob o tecido da blusa, a rigidez da carne jovem. Então percebi que a mendicância e a hipocondria daquele corpo haviam morrido para mim e talvez para todos. Cheguei a ter a impressão de que ela e o seu corpo tinham existido apenas para isso, apenas para ter algo não nascido dentro de si e o que vinha agora era a queda solitária. No momento em que o abraço terminou, surgiu em mim algo que era uma mistura de raiva e ternura. Algo que poderia ser a voz da carne; o seu apelo ancestral; o falhado instinto da carne em existir em outra carne.


Agora ela me perguntava que livro eu tinha nas mãos. Respondi que não era nada especial e perguntei o que fazia na cidade. Venho para cá duas vezes por semana, respondeu para acrescentar logo em seguida: os terapeutas daqui são melhores – cobram mais caro. Sem dizer nada, mirei o seu rosto, e notei que já não era apenas a depressão que o sulcava, escavando cada vez mais fundo: a erosão dos anos trazia marcas e sombras, e o curioso é que aquele começo de velhice chegava a atenuar o desespero com um ar de distinção, de sobriedade. Quando vierem os cabelos brancos e a falência total da carne, aí ela será uma velha triste como tantas outras – pensei – mas isso pode demorar. Ela me disse que ainda estudava em eucaliptos, cursava o último ano, e que eu acertara ao fugir daquilo tudo. Quis consolá-la com um pouco de melancolia. Respondi que na maioria das vezes sentia-me solitário, e que naquela noite nem pretendia comprar um livro: apenas matava o tempo antes de ir ao cinema, e seria bom ter a companhia dela. Ela aceitou, mas a verdade é que, durante a exibição do filme, tive os olhos fixos na tela o tempo todo. Não quis beijá-la porque o seu corpo já não me pedia nada. No entanto, inúmeras vezes durante a projeção, lembrei-me das madrugadas em que dormimos lado a lado. Lembrei-me do peso da sua sua respiração; do halo feminino, ora insuportavelmente triste, ora excessivamente lascivo, que se irradiava de sua pele; da carne que se crispava ao menor toque. Ao fim da sessão, abraçamo-nos, e percebi os contornos dos seios, mas a carne já não estava tesa, rígida, e uma última vez o casmurro às avessas que existia em mim revirou velhas suspeitas. Chovia fino enquanto caminhei de volta ao carro. Poças tinham se formado aqui e ali, refletindo o néon que descia das fachadas das lojas, enquanto ao longe a rodovia vazia e escura confundia-se com as trevas do terreno baldio. Segundo relatos, ela afogou-se no açude de eucaliptos algumas semanas depois, no final de fevereiro. Ouvi a notícia com pesar e até espanto, mas isso não impediu aquele ano de ser um dos mais gloriosos.

domingo, 14 de outubro de 2007

possível fragmento (em dezembro)

O ano anterior fora horrível, embora quase salvo pelo mês de dezembro, de muitas caminhadas noturnas e visitas a casas de fliperamas e salões de bilhar. No primeiro desses passeios, saí às ruas apesar da ameaça de chuva – nuvens avermelhadas acima dos telhados e um vento forte e úmido que vergava as palmeiras e erguia um torvelinho de papéis e pétalas de flores. Desde os tempos do Pato, antes de ingressar na faculdade, eu não perambulava pelas ruas da cidade velha durante a noite. E foi bonito ver, nos quarteirões perto do Mercado Municipal, aquelas construções de 1930/40 destruídas pelo abandono e enfeitadas com luzes amarelas, verdes e azuis. Perto da Praça da Catedral o vento era tão forte que as árvores, curvadas, quase tocavam o solo. Continuei caminhando, passei pelas sorveterias e esquinas cheias de gente e logo alcancei aquele trecho mais escuro da Rua Amazonas, antes de ela voltar a se iluminar e desembocar na Praça do Teatro, a mais bonita da cidade durante a época do natal, pois o chafariz fica ligado toda a noite e as copas das árvores são adornadas com gigantescos e fulgurantes frutos de plástico vermelho. Nesse trecho escuro da Rua Amazonas, havia uma casa de fliperamas.

Quando voltei às ruas, os ventos tinham cessado. Agora, da imobilidade das árvores e do céu, descia um ar gorduroso e sufocante. Cruzei a Praça do Teatro e continuei descendo. Quando alcancei os quarteirões mais baixos da cidade, a pestilência do ar já era insuportável: o que perturbava, quase tangível, era mais do que a súbita aspereza da atmosfera, mas a consciência de uma carne insone há madrugadas, curtida pelo sol, arrefecida pelos ventos noturnos e depois fustigada por uma inesperada alteração na densidade do ar. Eu caminhava pelo quarteirão onde, há alguns meses, numa tarde de sábado, vira um bêbado estatelar-se no chão. Lembrei-me de como parecera morto, da poça de sangue que começara a se formar ao redor da cabeça, do grupo de homens que correram para ajudá-lo e de como eu fora obrigado a tomar parte daquilo tudo, erguendo-o junto com os outros homens (eu segurava uma das pernas) e levando-o por um corredor estreito e fétido, o qual terminava numa sala escura, onde um grupo de velhos sem camisa e cheirando a bebida se reunira em torno da tevê. A essa altura, o bêbado tinha começado a recobrar a consciência e sacudia, pesada e debilmente, as pernas. No caminho de volta, enquanto ainda caminhava pelo corredor, observei, no chão poeirento, o rasto de sangue, e pensei com horror na possibilidade daquele sangue ter me tocado na pele, nas roupas. Logo depois topei com uma rapariga de cabelos claros, olhos escuros, trajando uma bermuda puída e uma camiseta apertada que permitia ver, na altura do estômago, pedaços de uma carne lívida e flácida. Ela tinha saído de um dos bares do outro lado da rua e, ao me abordar, perguntou se eu tinha um preservativo para lhe vender. Respondi que não. Ela questionou os outros homens que haviam ajudado o bêbado, seguiram-se risadas.

Em casa quis escrever um poema. Quis que o nojo e o desprezo fossem ternura e depois quis que a ternura fosse o espírito do mundo. Até cheguei a escrever meia dúzia de versos de uma mentirosa indulgência. Poucas semanas foram o bastante para eu deixar de pensar no homem caído, mas a memória da menina perdurou por meses. Ao passar por aqueles sítios, não deixava de olhar para os bares, pastelarias, hotéis antigos transformados em pensões escuras e decrépitas. E, se nem sequer posso dizer que havia desejo e busca, também não posso afirmar a ausência de desejo ou busca. Eu apenas mirava aquelas pessoas e aqueles prédios e pensava em como a vida podia ser tão baixa, em como a carne era capaz de se degradar, e muitas vezes vinha quase uma ânsia de se misturar – o impulso de estar dentro, de entender, de saber, de ao menos provar aquilo que era tão miserável e fértil e talvez inumano; e às vezes, como naquele primeiro passeio noturno em dezembro, eu me demorava de propósito, rondava os quarteirões, procurava um vestígio de beleza, ao menos um sinal de que o nojo e desprezo pudessem ser ternura e ao menos um indício de que a ternura pudesse ser o espírito do mundo. No entanto, tudo o que eu fazia era andar. Era olhar para as luzes ardentes, para a degradação – tudo o que fazia era nunca desejar, nunca buscar, mas também nunca deixar de desejar ou buscar.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

idílio

A morte do corpo, e apenas do corpo, é o tema central (talvez o único tema) de “Homem Comum” (“Everyman”), de Philip Roth. Portanto, nada mais natural que a personagem central não ter um nome, pois a biografia narrada não é a de um homem; é a história de um corpo e a sua degradação, passo a passo, da hérnia operada na infância até os colapsos da velhice. A biografia de um corpo que, como quase todos os outros, é saudável no começo. No entanto ele vai se estragar – agoniza, apodrece e morre porque tem que agonizar, apodrecer e morrer: não importam as dietas seguidas, os tratamentos feitos ao pé da letra, o diligente cuidado durante anos, décadas. Ao cabo de tudo virá a precariedade dos órgãos que começam a falhar, as doenças, as cirurgias, as pontes de safena, os tubos de respiração artificial, as quimioterapias, até que é alterada a percepção do tempo e talvez não seja possível morrer em paz. Talvez a única alegria possível e verdadeira seja a de um corpo saudável, e, no fim, a certeza de ter sido um corpo bom e pleno não é mais do que a amarga e senil evocação de um paraíso distante.

Ao comprar o livro, tinha a idéia de, após a leitura, passá-lo ao pai, para que ele enfim conhecesse a prosa de Roth. Mas, a cada página lida, lembrava-me de suas últimas crises de hipertensão (numa delas ele respirava pesado no banco do passageiro, podia deixar de existir a qualquer momento), de umas sombras surgidas ao redor dos olhos, da corcunda cada vez mais proeminente, da tocante melancolia que tenho percebido aflorar durante algumas risadas. O resultado de tais pensamentos é que, agora, não tenho a menor vontade de lhe passar o livro. Todos morrem e todos sabem que vão morrer, mas saber da morte é diferente de ser a morte. Talvez seja de um sadismo violento colocar o livro na cabeceira da sua cama, mas é possível que ele passe incólume pela leitura, é possível que o medo seja apenas meu, um medo que é um resto de infância e também uma das primeiras antecipações da morte: se existe, no passado, a lembrança de um paraíso, talvez a primeira sensação desse paraíso seja a certeza de que são eternos aqueles que amamos, e a segunda – e a mais permanente sensação – é a cega crença na própria imortalidade.

Aliás, não é de se estranhar que, durante a leitura, eu tenha revirado a memória para resgatar imagens que me provassem a glória de ainda habitar um corpo bom, e o que me assaltou foi a lembrança de umas dessas noites em que a alegria surge de um cenário de aparente monotonia. Foi durante o primeiro ano do namoro. Naqueles meses, nas noites de quarta, eu a levava para as suas aulas de caratê. Enquanto ela treinava, eu aproveitava para caminhar pela vizinhança. Gostava disso porque era uma parte da cidade que não conhecia bem, mas aos poucos surgiram pontos de referência, como a fachada de um supermercado que, sob a luz branca irradiada pelos holofotes do estacionamento, lembrava-me muito uma tela de Hopper. Nessa noite, todavia, não fui muito longe. Começou a chover muito forte e precisei voltar para o carro e lá esperar durante quase uma hora. Às vezes olhava na direção da academia e a via, através da vidraça, durante o incompleto movimento de um golpe, mas logo ela entrava num ponto cego e desaparecia. Depois eu olhava para a cidade, para a quietude da rua deserta sob o aguaceiro. Quando ela aparecia novamente, mais uma vez prestava atenção na incompletude de seus movimentos e ficava alegre porque mais tarde iríamos estar juntos. Então mais uma vez ela saía de meu campo de visão e mais uma vez eu voltava a contemplar os telhados castigados pela chuva, a luz amarela e opaca que descia do alto dos postes, e às vezes ligava o rádio e alternava entre uma estação que tocava sucessos antigos e a narração de um jogo de futebol.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Lá há dias como este

Em dezembro há as tempestades e os caminhos ficam cobertos de pétalas amarelas. Em fevereiro e março, o calor, sem perder a força, começa a agonizar: o ar fica áspero e a luz que declina é crua e antiga, como se não houvesse noite – e nem sequer crepúsculos – há meses, talvez anos. Há chuvas, e, à medida que abril se aproxima, os ventos ganham frescor, retornam os ocasos, o céu cravejado de estrelas gordas, e as manhãs e tardes, apesar do calor ainda estalar nos terrenos baldios, assumem uma claridade pacífica.

Essas condições climáticas perduram durante o inverno, cujo rigor se resume a algumas poucas madrugadas. Então vem agosto e o estio, iniciado há poucas semanas, torna-se cruel. Os ventos quentes retornam e trazem o cheiro de cana e terra queimada. Os jornais informam que a umidade do ar está em níveis críticos, nas escolas deixam de praticar atividades físicas, e suplementos especiais reportam os cuidados que cada um deve tomar. A seca, que nos anos bons dura até setembro, muitas vezes ultrapassa outubro.

Não sei quando comecei a prestar atenção no clima. Talvez durante a leitura de Grande Sertão: Veredas, ao perceber quantas vezes o narrador tenta definir o que é sertão – mais do que um espaço geográfico, um espaço onde existem aquelas vidas e não apenas isso: um lugar onde possa existir a ficção. Após Guimarães Rosa, vieram as leituras de Faulkner, e o território inventado por ele, Yoknapatawpha, no estado do Mississipi, cenário da maioria dos seus livros. Quentin Compson disse:

Lá há dias como este no fim de Agosto, em que o ar fica fino e sôfrego como aqui, com um não sei quê de nostálgico, de triste e familiar. O homem é o somatório de suas experiências climáticas dizia o pai. O homem era o somatório de tudo mais alguma coisa.

Creio que foi a partir daí que passei a situar o que escrevo numa cidade apenas parecida com a minha, mas uma cidade cujas peculiaridades climáticas eu conheço com exatidão e orgulho – uma cidade com cheiro de terra, sob uma luz que ainda zune em meu sangue. Agora vem o árduo e talvez inútil trabalho de povoar esse lugar, de encorpá-lo com memórias e histórias e sombras que não sejam apenas as minhas, embora ainda não tenha o que somar a tais experiências climáticas. Às vezes, como no mês passado, enquanto ia a uma cidade perto da minha, diviso os campos às margens da rodovia. Não há nuvens e a luz, aliada aos ventos poeirentos, chega a ferir os olhos. Percebo um trator trilhando um caminho sobre a terra. Por onde passa ergue-se uma névoa de poeira vermelha e áspera, que logo depois se dissipa. Rio para mim mesmo e murmuro, com alguma frustração, mississipi.

domingo, 7 de outubro de 2007

tarde de sábado - apontamentos

1. No salão de bilhar da Rua Santiago, nunca entendo o que jogam o sujeito atrás do balcão e o seu habitual oponente. Cada um pega um punhado de cartas e, sem nenhum critério aparente, descartam algumas. Quase não conversam.

2. A moça que não sei se é filha ou amante do dono do lugar parece mais feia do que há dois meses. Quando eu e Cartago chegamos, ela comia de um prato de alumínio, olhos atentos na tevê da parede. Não quisemos incomodá-la e escolhemos uma mesa isolada. Após terminar o almoço, ela sumiu por uma das portas que dava para os fundos do bar. Reapareceu minutos depois e pude vê-la melhor. Calçava uma sandália de couro, vestia uma saia puída que mal chegava aos joelhos e uma incomum blusa rendada que parecia ter sido tirada de uma boneca. O rosto, de uma lividez ungida pelo suor, cintilava. Não devolveu os nossos olhares e voltou a sentar-se na cadeira antes ocupada. A essa altura, o jogo de cartas tinha terminado e o seu pai ou amante foi até ela e passou a acariciar a sua fronte, os cabelos negros e gordurosos. Cartago falava da esposa. De um programa de computador que, ao analisar as opções da bolsa de valores, escolhe as ações que devem ser compradas e as que devem ser vendidas. O vento – ou melhor, a aridez do ar está repleta de sol e de terra que sobe das calçadas e desce dos telhados. Lembro a mim mesmo que a avó foi sepultada numa tarde como essa.

3. Passamos em frente a um curso preparatório para o vestibular. É dia de simulado e a calçada estava tomada por raparigas de dezessete e dezoito anos. Cartago afirmou que, há exatos dez anos, estávamos em situação idêntica. Em silêncio, evoquei os dias durante os quais ainda podíamos caminhar pela cidade nas tardes de sexta. O último desses passeios foi em maio do ano passado: eu vivia as primeiras semanas do namoro e tinha o corpo exausto e, no entanto, desperto como nunca antes – uma sensação de quase aniquilamento e quase delírio por ainda estar recebendo o início do amor. Soprava um forte vento enquanto, diante da escola onde havíamos estudado, metade oculto nas sombras, contemplávamos a saída dos alunos.

4. No final da tarde, quando já estávamos de volta ao salão de bilhar, lembrei-me da outra avó, a que ainda não morreu. Não sei o que conduziu o meu pensamento até ela, talvez a visão da fachada de uma clínica geríatrica no outro lado da rua. Sobre avó morta escrevi inúmeras páginas: uma minuciosa narração do colapso que a matou afogada pelo próprio sangue, a descrição da sala onde ocorreu o velório, o sepultamento, os dias que se seguiram, o sol, a dor. Diante do cadáver da avó morta, eu tive a absurda sensação de estar diante de algo que já tinha deixado de existir.
Mas a outra avó, a que ainda não morreu, parece representar uma situação oposta. Ela não reconhece ninguém, a memória deixou de existir, a carne fica mais macilenta a cada dia, basta um vento para abrir feridas nas pernas e nos braços. Em outras palavras: ela é a ausência – ela existe, mas é a existência como mancha, borrão cada vez mais pálido, transparência. Quando a colocamos sentada no sofá, é como se não estivesse lá, e tenho a certeza de que, se fosse um cadáver, todos reparariam. É como se um corpo morto representasse a derradeira concretude não apenas do que deixou de existir, mas também do que existiu – ainda que em cores pálidas, desbotadas, degradantes – durante tanto tempo. Quero acreditar que, quando a avó ainda viva morrer, e quando todos nós estivermos diante de seu cadáver, ela deixará de ser ausência. Ela voltará enquanto coisa viva que não existe mais e trará o espanto, talvez a dor, talvez a memória, talvez até a literatura e então será possível uma detalhada narração de seus últimos anos e agonia. Poderá alguém vir e dizer o quanto era comovente a demência, o corpo abandonado no sofá e outras imagens poderão ser evocadas. Talvez o canteiro de rosas e ervas cultivados por ela e o cheiro de hortelã nas tardes de calor. A concretude da morte enquanto madeleine.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

os nomes dos perdedores

Da infância, lembro-me que, nas noites de quarta ou quinta-feira, uma emissora de menor audiência exibia jogos de futebol. Nas noites geladas ou chuvosas, quanta melancolia existia nisso: nada parecia estar em jogo e as partidas, disputadas em campos enlameados e sob neblina, atraíam pouco público – era como se não existissem troféus, a possibilidade de ganhar, e os grandes jogadores não passavam mais de fantasmas mortos há vinte ou trinta anos.

A lição de casa era feita na mesa de mármore da cozinha, e muitas vezes eu acabava a tempo de ir na rua. Durante o calor, subiam meninos e meninas de outras vizinhanças e era divertido, mas, nas noites geladas de maio e abril, poucos garotos apareciam para brincar. Numa das casas no final do quarteirão, existia uma velha agonizante e era comum ela receber a visita da filha e do neto. O menino chamava-se Lucas e por um tempo fomos amigos (a mãe dele não gostava dos outros garotos do quarteirão e eu era o único que podia brincar no quintal da velha, debaixo da parreira, e durante o frio de outono o chão era coberto por folhas): disputávamos figurinhas de jogadores e conversávamos sobre futebol. Resultado disso é que acabei por decorar os jogos de quase todas as copas do mundo. Durante uma aula de história a professora disse ninguém se lembra dos nomes dos perdedores. Quem sabe, por exemplo, o segundo lugar da copa de 54? Eu levantei a mão e disse Hungria. Houve espanto e a professora, contrariada por ter sido desmentida em sua tese, perguntou-me sobre os perdedores de inúmeros campeonatos mundiais, e não errei nem sequer uma resposta: Holanda, Brasil, Suécia, Chile, Argentina, Tchecoslováquia.

Teve uma noite de domingo que saí para a rua após o jantar. Estava gelado e eu tinha, como companhia, um rapazote com o mesmo nome que eu e outros dois meninos cujos nomes me esqueci. Sentamo-nos nos degraus do bar da esquina e iniciamos um violento jogo. Com um pedaço de pedra vermelha na mão, um de nós desenhava na calçada enquanto os outros precisavam adivinhar o que era desenhado. O acertador ganhava o direito de perseguir os demais e distribuir reiadas em quem encontrasse pela frente, isso até o menino desenhista gritar uma palavra chave – a partir de então os meninos fugitivos podiam espancar o outro menino até este alcançar um posto seguro. Isso nos divertiu por um tempo, mas o tédio retornou. Então alguém falou de uma rapariga que fodia com qualquer um que a solicitasse. Um outro alguém sugeriu chamá-la e todos pareciam estar animados, até eu, embora tudo aquilo que me parecesse absurdo e doloroso: absurdo não apenas pela ausência de lógica no pensamento cunhado por nós – mas sobretudo pelo fato do sexo, ou a possibilidade do sexo, irromper com tanta violência e arbitrariedade. Então eu, que tinha saído de casa após o jantar apenas para conversar com os amigos, iria me deparar com o horror de estar nu (e a súbita, a horrível consciência do corpo magro e precário) diante de uma miúda também nua? Além disso, eu deveria extrair – de mim mesmo, do terror de meu corpo pubescente – um vigor, um apetite que ainda não gritava, que ainda não encerrava qualquer sentido ou agonia.
Ainda assim, segui os rapazes. Acabamos, em silêncio, diante de uma casa pobre (não me esqueço do muro esburacado, da mangueira no quintal e, ao fundo, de uma luz amarela e esmaecida). Um dos meninos pediu que os outros se afastassem, bateu palmas e conversou com um vulto. Depois veio até nós e disse agora é só esperar na esquina do bar. Nessa hora duvidei que alguma coisa aconteceria e fiquei espantado com a tristeza que apareceu em mim. Ainda me lembro do caminho de volta – as luzes fracas, a quietude do domingo, a noite gelada, os ventos finos e cortantes, o lento agitar dos galhos nas árvores, os vôos rasantes dos morcegos. Ficamos sentados nos degraus do bar por uma hora ou mais, sem falar nada, aturdidos pelo peso e depois pelo vazio de uma espera triste e inútil.