segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Lá há dias como este

Em dezembro há as tempestades e os caminhos ficam cobertos de pétalas amarelas. Em fevereiro e março, o calor, sem perder a força, começa a agonizar: o ar fica áspero e a luz que declina é crua e antiga, como se não houvesse noite – e nem sequer crepúsculos – há meses, talvez anos. Há chuvas, e, à medida que abril se aproxima, os ventos ganham frescor, retornam os ocasos, o céu cravejado de estrelas gordas, e as manhãs e tardes, apesar do calor ainda estalar nos terrenos baldios, assumem uma claridade pacífica.

Essas condições climáticas perduram durante o inverno, cujo rigor se resume a algumas poucas madrugadas. Então vem agosto e o estio, iniciado há poucas semanas, torna-se cruel. Os ventos quentes retornam e trazem o cheiro de cana e terra queimada. Os jornais informam que a umidade do ar está em níveis críticos, nas escolas deixam de praticar atividades físicas, e suplementos especiais reportam os cuidados que cada um deve tomar. A seca, que nos anos bons dura até setembro, muitas vezes ultrapassa outubro.

Não sei quando comecei a prestar atenção no clima. Talvez durante a leitura de Grande Sertão: Veredas, ao perceber quantas vezes o narrador tenta definir o que é sertão – mais do que um espaço geográfico, um espaço onde existem aquelas vidas e não apenas isso: um lugar onde possa existir a ficção. Após Guimarães Rosa, vieram as leituras de Faulkner, e o território inventado por ele, Yoknapatawpha, no estado do Mississipi, cenário da maioria dos seus livros. Quentin Compson disse:

Lá há dias como este no fim de Agosto, em que o ar fica fino e sôfrego como aqui, com um não sei quê de nostálgico, de triste e familiar. O homem é o somatório de suas experiências climáticas dizia o pai. O homem era o somatório de tudo mais alguma coisa.

Creio que foi a partir daí que passei a situar o que escrevo numa cidade apenas parecida com a minha, mas uma cidade cujas peculiaridades climáticas eu conheço com exatidão e orgulho – uma cidade com cheiro de terra, sob uma luz que ainda zune em meu sangue. Agora vem o árduo e talvez inútil trabalho de povoar esse lugar, de encorpá-lo com memórias e histórias e sombras que não sejam apenas as minhas, embora ainda não tenha o que somar a tais experiências climáticas. Às vezes, como no mês passado, enquanto ia a uma cidade perto da minha, diviso os campos às margens da rodovia. Não há nuvens e a luz, aliada aos ventos poeirentos, chega a ferir os olhos. Percebo um trator trilhando um caminho sobre a terra. Por onde passa ergue-se uma névoa de poeira vermelha e áspera, que logo depois se dissipa. Rio para mim mesmo e murmuro, com alguma frustração, mississipi.

4 comentários:

d. chiaretti disse...

Não me lembrava desse trecho. É do Som e a Fúria?
De qualquer modo, leio com certa regularidade esse blog. Só que costumo não comentar textos literários... hehe...

mississipi disse...

é de O Som e A Fúria, mas copiei de uma tradução portuguesa que ganhei de um amigo - e foi esta tradução que ficou na minha memória afetiva, embora a última tradução brasileira, a da Cosac Naify, também seja muito boa. Nessa tradução, o seguinte trecho aparece assim:

"Há dias no final de Agosto lá no Sul que são assim, o ar fino e ansioso e assim, com algo de triste e nostálgico e familiar. O homem é o somatório de suas experiências climáticas disse o pai. O homem é a soma de seja lá o que for"

Mas não sei qual é o meu livro favorito do Faulkner. Adoro O Som e A Fúria, mas também tenho muito carinho por Enquanto Agonizo. Bom, sempre que quiser volte ao blog, estou voltando a escrever agora, ainda um pouco enferrujado, após dois anos, e vejo os textos que ponho aqui como apontamentos, rascunhos, idéias. E volta e meia passo em outras repartições

d. chiaretti disse...

Meu favorito é o "Palmeiras Selvagens". E olha que, até a metade, era meu "menos favorito".
E meu "Som e a Fúria" é uma eção do Círculo do Livro, com uma capa terrível, mas cheio de notinhas e tal. Coisa que a edição nova da Cosac não tem. aliás, quase todos meus Faulkners são de sebo.... Meu favorito é uma edição de 1941 de "Luz de Agosto" comprado por R$ 3,00...

mississipi disse...

Palmeiras Selvagens é espetacular. É um livro áspero, vertiginoso, principalmente a história do casal, que, em certos momentos, me lembra um casal noir (não sei se sou o único com essa impressão) vivendo um périplo macabro e alucinada. Dos Faulkner que tenho aqui em casa, apenas dois comprei em sebos: Luz em Agosto e Santuário. Santuário até que não foi uma surpresa... mas achar Luz De Agosto foi quase uma redenção pessoal, achei em dezembro, numa época meio estranha da minha vida. Eu tinha saído para dar uma volta à noite porque já eram aqueles dias em que o comércio ficava aberto até às dez horas. E na hora de ir embora, já cansado, um pouco eufórico, resolvi me meter num sebo. E lá estava Luz de Agosto, por 10 reais, e enquanto voltava para casa mal podia me conter - aquela sensação de "agora vai", como se a menina mais bonita da noite tivesse rido para mim, e isso às vezes é pouco e às vezes é muito... naquela noite foi muito.