quinta-feira, 6 de novembro de 2008

sobre a juventude

"Vejam", disse Pedro, que tinha os olhos fixos na distância, "eis o homem cujo rosto foi destruído por águias e falcões ".

Era uma dessas tardes no início do verão, quando a noite demora mais a chegar e quando o sol, antes de se esvair, abre sobre a cidade uma sombra límpida e calma. Para onde quer que olhássemos havia silêncio. E o silêncio, no momento em que interrompemos os nossos afazeres e miramos o homem apontado por Pedro, ganhou uma existência tangível, quase solene. Lá estava, todos nós o contemplávamos: o homem que fora desfigurado por aves majestosas. Ou melhor: nós o víamos, mas não víamos a sua face destruída, uma vez que durante todo o tempo ele esteve distante, e as cores da luz em fuga – agora percebíamos – não caíam sobre a cidade, mas sobre o seu corpo, que parecia apartado de nós por uma inultrapassável linha de sombra.

Ainda assim, não deixamos de observá-lo por um segundo sequer, pois ele era o peregrino pelo qual muitas vozes suplicavam, o eleito a quem tantos teriam confiado os próprios corações. O rosto destruído lhe conferia uma grande autoridade moral, uma natureza quase divina, ou talvez – por motivos misteriosos – a sua presença era o bastante para que nos sentíssemos próximos do que havia de mais grandioso em nós. De repente tínhamos a consciência de algo terrível porque maravilhoso e urgente e isso não se traduzia em palavras, tampouco em atos. Pois foi apenas isso o que aconteceu durante aquela tarde. Observamos a passagem do homem de rosto carcomido por talvez vinte minutos. Ele não se aproximou, nada falou. Nós guardamos atitude semelhante. O silêncio, cuja existência parecia tão fecunda e alegre, precipitou-se em um canto de cigarras. No céu, as cores em fuga assumiram um difuso brilho dourado, que se tingiu de vermelho, que se transmudou para o violeta, que passou para um pálido azul, que escureceu, que se transformou em noite. No dia seguinte, soubemos da morte daquele que tivera o rosto devorado pelas aves.

Depois daquela semana de eventos singulares, seguimos com as nossas existências, as quais se revelaram econômicas tanto nos triunfos quanto nas mesquinharias. Apenas muitos anos mais tarde – quando éramos velhos cujas vozes eram um frêmito que se esgotava – viemos a conhecer outras histórias a respeito do homem que assombrara a nossa juventude. "As aves não o atacaram e ele nunca foi mais do que um miserável, um porco que desperdiçou a vida em prostíbulos, que se apaixonou por mulheres corruptas, que teve o corpo roído por uma infinidade de doenças venéreas" – eis o que passaram a dizer, e o debate cresceu até que se decidiu exumá-lo para estudos, mas também esse ato não possibilitou qualquer conclusão: a terra, que o acolhera como um sudário, também apagara qualquer vestígio de sua existência neste planeta.

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