sexta-feira, 30 de novembro de 2007

a amiga americana

Em O Amigo Americano, Tom Ripley vive em Hamburgo como um negociante de artes. Na verdade, Ripley é um falsário entre falsários: além de vender as obras assinadas por um pintor que finge estar morto, ele próprio assumiu o nome-rosto-exílio de um homem cuja identidade foi roubada e que nunca poderá voltar para casa (o que há de errado com um cowboy em Hamburgo? – indaga Ripley, trajado como se vivesse nos ermos do Texas ou Missouri, e a pergunta dá a medida de seu deslocamento e desespero). É na condição de negociante de artes que ele conhece Jonathan Zimmerman: este é um homem honesto, um antigo restaurador, hoje emoldurador – e também um sujeito que sofre de uma incomum doença no sangue, e por conta disso talvez esteja fadado a morte. Quando apresentado a Tom Ripley, Jonathan recusa-se a apertar a sua mão. Com um tom de desprezo na voz, diz eu já ouvi falar de você. Apenas por isso, em retaliação a essa demonstração de asco, Ripley decide arruinar a existência de Jonathan Zimmermam. Ao ser questionado pelo próprio Jonathan sobre as suas motivações, ele relembra o que se passou quando foram apresentados e afirma é um motivo bom o bastante, não?

O filme eu vi há algumas semanas, mas esta frase – é um motivo bom o bastante, não? – foi lembrada por mim ontem. Eu escutava Dean Martin e pensava na época em que ainda não escutava Dean Martin; a época na qual pensava que Martin tinha sido apenas um ator cujo melhor papel fora o do bêbado no faroeste Onde Começa O Inferno (Rio Bravo). Foi há anos, quando ainda estudava Direito. Uma colega tinha uma irmã que vivia nos Estados Unidos; uma cidade bem ao norte, na fronteira com o Canadá, e uma vez por mês ela mandava fotos da neve e às vezes das flores que cresciam na neve. Esta menina que vivia na fronteira com o Canadá tinha um nome estrangeiro, também isso me atraiu. Naqueles anos ainda impúberes eu realmente acreditava que teria mais sorte com um rapariga de nome Isabelle, ao passo que um abismo intrasponível me separava das isabelas ou isabéis. Depois, e não me lembro por que falávamos sobre isso, a minha colega disse que a sua irmã de nome estrangeiro gostava de ouvir Dean Martin. Por isso comecei a gostar dela – porque ela ouvia Dean Martin – e se alguém me perguntasse sobre os meus motivos eu bem que poderia parafrasear Tom Ripley: é um motivo bom o bastante, não?


Meses depois a rapariga de nome estrangeiro voltou para o sul e a conheci. Não só o nariz, também a sua boca era fina e pequena e, no entanto, docemente sanguínea. A pele era clara, de uma palidez igualemente forasteira, enquanto os cabelos ondulados mal passavam da altura do pescoço. Aliás, devo dizer que, debaixo do sol, o corpo dessa menina sofria metamorfoses fulgurantes: o tom castanho (e petrificado) dos olhos assumia uma liquidez cor de mel; o rosto, apesar de continuar claro, afogueava-se e a boca vermelha e singela chegava a se intumescer, quase a desabrochar; e os cabelos ganhavam um brilho avermelhado. Com tudo isso, os meus motivos, que já eram bons o suficiente, tornaram-se incontestáveis. Todavia, não foi das mais vitoriosas a relação que tive com ela. Descobri que o abismo que me separa da isabelas também me separa das isabelles e demais miúdas de palidez e nome estrangeiros. Está certo, trocamos algumas palavras, até risos, e durante uma tarde de terça-feira fomos ao cinema. A despeito de não ser muito, também não é pouco. E não é por despeito que digo que, nas semanas que sucederam o seu retorno, ela viveu o ápice de sua beleza que florescera no norte e que agora vinha ao sul. A doce e branda claridade de abril-maio não tardou em ir embora e, no outono seguinte, quando retornou, já não colheu qualquer metamorfose. O que me leva a pensar que talvez seja ainda mais breve o esplendor das isabelles que ouvem Dean Martin e que se transformam sob a luz e que às vezes fotografam as flores que crescem em meio à neve.

Um comentário:

Paulo Bono disse...

gosto de textos coesos.

abraço, Mississipi