terça-feira, 27 de novembro de 2007

passeios

Pode ser que a falta de fôlego (tão logo alcanço a Praça do Teatro, sinto ardentes e irrespiráveis o ar e a luz) não seja sinal de velhice. Talvez a cidade já não me seduza como antes. Muitas vezes sinto que todas as esquinas e caminhos foram desbravados, de modo que não é possível ir adiante. Seria o mesmo que tentar prorrogar o período das grandes descobertas e navegações até os séculos XIX e XX. Não, a rota para as Índias já foi traçada, a América já foi encontrada – todas as caravelas lançaram-se ao mar, naufragaram as que não alcançaram o seu destino, e o Encoberto permanece encoberto.

Disse tudo isso a um amigo, semanas atrás, e ele me respondeu que é sempre possível encontrar um novo atalho para fronteiras bárbaras. Sursum corda!

Concordei, mas dias depois – era tarde de sábado, fui até o quintal e olhei para o sol a fim de me decidir, e o que percebi foi o vagoroso, quase impercetível fluir das horas escaldantes, o cheiro da terra queimada, e os ventos pesados e espessos que mal agitavam as folhas das bananeiras – usei o carro para ir até o centro comprar um livro.

Enquanto dirigia, lembrei-me dos dias que vieram após a morte da avó. Quando eu passava as manhãs – junto da mãe – rexemendo nos armários, decidindo o que seria guardado e que iria para o lixo. Um dos achados mais insólitos foi um verde olho de vidro que apareceu no fundo de uma gaveta. Também encontrei inúmeros dentes dentro de uma caixa de sabonete e, ao lado, uma dentadura de pelo menos 30 anos. Depois, deparei-me com uma enferrujada câmera fotográfica; o revólver que pertencera ao avô na década de 50; porcelana e cristal em excelente estado; caixas (de lata) de biscoitos. À medida que revirava tudo isso, sentia-me sujo, como se tocasse objetos dignos de repugnância. No entanto, isso não era o pior. O pior era levar os armários e demais mobílias (comidas por cupins) até o quintal e, com uma marreta, reduzi-las a pequenos pedaços de madeira, depois enfiar tudo numa carriola e jogar na caçamba que fora alugada. Após um dia de trabalho assim – que terminava pouco depois das cinco horas – era impossível permanecer em casa. Eu saía e ia muito além das praças do Teatro e da Catedral. Andava até os limites da cidade velha. Até os quarteirões onde os prédios acabavam e, em meio a poeira e a lama dos terrenos baldios, começavam novamente residências.

Do dia da morte da avó (início de outubro) até as festas em dezembro quase não choveu. Se me recordo bem, o estio terminou no entardecer da véspera de natal. Eu e o pai tínhamos saído para alimentar os animais da praça quando um aguaceiro nos apanhou. Escondemo-nos debaixo de uma marquise. A chuva não chegava a ser forte, mas os pingos eram grossos, e, vez ou outra, um sopro de vento soltava um frêmito das copas das árvores. O ocaso não foi mais do que uma penumbra cinza pousando sobre os telhados, como se as nuvens estivessem cada vez mais baixas. As luzes nos postes acenderam-se e, por um momento, foi como se esse céu plúmbeo estivesse cravejado de gordas estrelas douradas. A essa altura, a chuva caía fraca, embora correntes de vento ainda brandissem os galhos das árvores, mas agora sem qualquer frêmito. Eu não sabia se considerava tudo aquilo ou bonito ou triste ou apenas conveniente para a data e para o meu espírito – sabia apenas que era inútil, que o entardecer ficaria em mim como um vislumbre de beleza ou ternura e que às vezes eu sentiria a necessidade de resgatá-lo, mas apenas isso; nenhuma esperança e nenhum renascimento. De qualquer modo, a ternura perdurava quando saímos da proteção da marquise e caminhamos até o jardim coberto por pétalas amarelas e iluminado por luzes que ardiam (um fulgor avermelhado, perto de se extinguir) em globos que lembravam lanternas japoneses. Tal o cenário: o céu cinza, nas ruas um brilho dourado, dentro da praça chamas escarlates, o chão coberto por pétalas de flores e bosta de pássaros que tinham assumido a textura de um musgo escorregadio, os bancos de madeira em ruínas, e debaixo de um deles um cachorro também perto da extinção, que pouco ligou para a comida deixada por mim e pelo pai. No caminho de volta, ao passarmos diante do bar onde os homens se reúnem para jogar cartas e dominó, fomos saudados por um sujeito que entrou em seu carro e saiu em disparada. A ternura começava a se abrandar, uma nova sombra de asco avizinhava-se, e não apenas isso – exaustão também, cansaço de existir na cidade, a falta de ânimo para sair nos sábados seguintes e procurar garotas e ficar embriagado como aquele homem que, saudando a todos, saía alucinado.
Hoje quase já não saio para passear, mas às vezes, durante uma dessas minhas raras deambulações, até alcanço ruas que me são desconhecidas. Foi assim na última sexta, quando, aproveitando que nos dias de calor a noite demora a pousar, decidir ir ao sul de uma avenida larga e habitada por prédios de no máximo dois andares – um arremedo do que imagino ser a Hollywood Boulevard. Dobrando esquinas angulosas, fui me afastando cada vez mais da avenida. Quando dei por mim, perambulava por uma rua invadida pelo mato, sendo obrigado a desviar de galos. Ao atingir o ponto mais ao sul possível, comecei a subir. Tomei uma rua de início paralela à avenida, mas que com esta convergiria ao oeste, na sua numeração mais alta. A intersecção, percebi com uma antecedência de duzentos metros, seria ao pé de um auspicioso edifício erguido há poucas semanas. À medida que me aproximava, mais ermos ficavam os quarteirões (durante todo o trajeto não houve nem sequer uma silhueta de mulher que eu pudesse perseguir). Por fim cheguei a uma praça que me pareceu vazia, onde, no lugar que deveria pertencer ao coreto ou ao chafariz ou à imagem do soldado desconhecido, havia a estátua de uma carruagem conduzida por um anjo – o que me pareceu ser uma evocação dos Portões de Brandemburgo. Olhando com mais atenção, vi um bando de velhos que, na companhia do seus cães ou netos, descansavam nos bancos (brancos como mármore), outros exercitavam-se sob a diáfana (até meridiana) luz do entardecer. Não é possível ir adiante, pensei comigo mesmo, e iniciei o caminho de volta. Enquanto caminhava ao largo da praça e do condomínio, até pensei em Kaváfis, nos bárbaros que nunca haverão de chegar (pois aqui já estão) e na espera que não existe e que talvez nunca tenha existido. O que resta é morrer sob o sol, como se nunca tivesse havido noite ou brumas que se ergueram na distância e roeram os ossos dos encoberto e outros infantes ou deuses. Estes, disse a mim mesmo num dos meus delírios de fuga, jazem em outras fronteiras; além desses falsos portões e além dessa luz límpida, duradoura, inócua.

2 comentários:

d. chiaretti disse...

É a minha Califórnia mesmo. ehhe.
Alguns desses locais, especialmente os bancos das praças centrais e a biblioteca próxima ao teatro (única que freqüentei assiduamente na vida), me são muito caros.

mississipi disse...

o quadrado (não sei se forma uma quadrado perfeito) formado pelas ruas amador bueno, duque de caxias, são josé e avenida nove de julho foi para mim - e talvez ainda seja - o que muitos chamam de zona de conforto.