domingo, 30 de setembro de 2007

chuvas

O primeiro dos muitos cursos preparatórios (para concursos) que frequentei visava aprimorar os meus conhecimentos em informática. As aulas tiveram início logo após a chegada do horário de verão, o que me agradava bastante, pois saía da escola às sete da noite e ainda existia sol: uma luz cristalina, quase diáfana, e ao respirar as brisas era possível antecipar o cheiro dos primeiros temporais do calor – aliás, quando parecia que ia chover e o céu ficava carregado, a luz ainda descia, irisada, por espaços entre as nuvens, mas depois essa mesma luz, ao ser devolvida às alturas, refletia-se nas nuvens e, até o anoitecer, pairava sobre a cidade uma claridade calma e esbatida.

Numa sexta-feira caiu um temporal tão forte que não pude ir para casa após o término da aula. Fiquei na frente dos computadores, respondendo mensagens e lendo notícias, por trinta minutos ou mais. Quando saí, ainda havia restos de chuva (agora uma água suja, lamacenta) escorrendo por canos e dutos que saíam dos telhados e das marquises das lojas. Lembrei-me do natal em que ganhei o primeiro videogame: na tarde recordada, tinha ido com o pai até o centro da cidade (não me lembro o motivo, talvez uma consulta ao dentista) e, quando estávamos na rua, começou a chover forte. Corremos e nos escondemos debaixo de uma marquise. Eu mal podia conter a ansiedade: queria voltar para a casa e enfrentar os mafiosos que tinham ocupado uma cidade dos anos 30 ou final da década de 20. O derradeiro confronto acontecia um cais e, apesar dos péssimos gráficos, eu podia sentir a salgada umidade do ar, o chão de madeira rangendo após cada passo, e as gaivotas vindo e depois retornando à distância de um céu branco, chuvoso e triste.

Voltou a chover e entrei no Senhor Hambúrguer. Pedi um sanduíche e uma soda. Um menino gordo começou a aprontar o lanche e, da chapa de grelhar hambúrgueres, ergueu-se um fumo que primeiro engordurou as paredes, depois ganhou as calçadas e então o cheiro de carne e bacon grelhados somou-se ao odor de chuva e lama. Quando terminei de comer, o temporal já tinha passado. Agora o maior desafio era evitar a água suja que as marquises despejavam na calçada. Tive nojo quando, descendo a Rua do General, pouco antes de cruzar a ponte, passei por quarteirões ocupados por prédios abandonados (pressenti os ratos nas sombras), pastelarias e pensões miseráveis. Começava o crepúsculo e, na fachada de um prédio de três andares, ardia, em letras de néon vermelho, a palavra HTL.


Cruzei a ponte – o rio era um fluxo de água marrom e selvagem – e cheguei à rodoviária. Mais do que úmido, o ar estava engordurado, sujo, viscoso. Em meio a uma névoa quase maciça de gás carbono, os ônibus chegavam à estação, muitas pessoas corriam para não perder a viagem, no salão de cortar cabelo um negro com um jaleco branco tinha um olhar entediado, um cachorro grande e magro e machucado andava para lá e para cá e inspirava medo em alguns transeuntes. Também avistei, tomando um táxi, uma rapariga dos tempos da faculdade. Foi o bastante para que eu me lembrasse de tudo o que sabia sobre ela. Evoquei os olhos verdes, o comportamento tido como promíscuo, o assombro que tomava conta de mim quando conversávamos, o mistério que envolvia o apartamento que ela ocupava na Rua Sebastião (a poucos metros do cinema e quase em frente ao Senhor Hambúrguer), o conto no qual eu a dizia que ela era bonita porque distante. E veio a idéia de que tudo – o assombro, o mistério, o encanto da promiscuidade e da distância, as ficções jamais consumadas – tinha fracassado.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

os planos A e B

Cartago pediu uma cerveja mais escura e amarga e eu pedi uma cerveja normal. Dei o primeiro gole e veio uma náusea branda, quase imperceptível. Quis conversar sobre as meninas que pretendia ver à noite, mas continuei calado: começava a ficar ridículo falar de miúdas e das possibilidades de me entender com elas. Ainda assim, não deixei de mencionar um Plano A e um Plano B. O sábado era sem sol, quieto, e, do alto dos telhados, às vezes vinha um murmúrio – era o arrulhar ou o bater de asas de pássaros que alçavam vôo ou pousavam. Estávamos junto ao balcão do cinema da Rua Sebastião, o público para a sessão das quatro horas não chegava e, além de nós e das mulheres que serviam a bebida, não havia mais ninguém.

Eram cinco horas quando o sol deixou de se esconder atrás das nuvens e projetou figuras no chão do hall. Ao cheiro de poeira e mármore juntou-se o de terra e esse odor, por vezes, lembrava pólvora. Pagamos as bebidas, saímos e tomamos o rumo do salão de bilhar da Rua Santiago. Cartago afirmava estar bêbado e andávamos devagar. Mais confiante, eu detalhava os rostos e olhos e ombros e os contornos do seios por trás dos planos A e B.

O salão de bilhar também estava vazio e pegamos uma mesa nos fundos. Fizemos alguns comentários sobre aquela que parecia ser a amante ou filha do sujeito que administrava o lugar. Logo depois essa menina saiu por uma porta que não tínhamos avistado e foi se sentar junto ao balcão, perto de onde o suposto amante ou pai jogava cartas com um bêbado conhecido. Depois chegou a prostituta de pele escura e que sempre usava um chapéu de crochê. Ela também sentou-se junto ao balcão, mas não pediu nada, apenas começou a conversar com a adolescente. Depois entrou um grupo formado por rapazotes e raparigas (os meninos vestidos de negro, com camisetas t shirt estampadas com fotos de bandas de rock, e as meninas com no máximo quinze anos de idade, a maioria acima do peso, e algumas, além dos trajes escuros, tinham as unhas pintadas de negro). Eles pegaram a mesa ao lado e, como não sabiam se posicionar, volta e meia esbarravam em mim e Cartago. O sol tinha sumido mais uma vez e uma penumbra quente e espessa caiu sobre o lugar. O administrador acendeu as luzes e também ligou o rádio e sintonizou numa estação que tocava rocks que tinham feito sucesso há dez anos.

Quando o crepúsculo chegou sobre a cidade, passávamos no quarteirão do colégio onde havíamos estudado no final da década passada. Continuava igual, mas o lugar transformara-se na sede de um curso para enfermeiras. Até vimos algumas meninas de branco caminhando contra o lusco-fusco. O Pato, que ficava ao lado do velho colégio e que tinha abrigado as primeiras partidas de bilhar, era agora uma residência de dois andares. Corriam os últimos dias de agosto e, ao olhar para o telhado da casa do bispo e depois para a cúpula da catedral, soube que o calor tinha regressado (o vento quente e grosso a ponto de parecer imóvel levantava papéis abandonados nas calçadas, revoadas de andorinhas invadiam as copas das árvores, dos gramados da praça vinha – ansioso e áspero e familiar – o odor de relva e de terra queimada que não se percebe nos dias frios, enquanto o azul do céu, em vez de empalidecer, escurecia cada vez mais).

Cartago deixou-me em casa e combinamos que mais tarde sairíamos com o meu carro. Antes do banho, ainda liguei para um conhecido e falei da noite e dos planos A e B. Ele pareceu animado e indicou o endereço onde eu e Cartago poderíamos apanhá-lo mais tarde. Depois me lavei e saí de casa em seguida.

O endereço indicado por Etrusco parecia um prédio abandonado. Apertamos a campainha e, passados alguns segundos, ouvimos um zumbido, depois um estalo, depois o portão abriu sozinho. O interior do prédio lembrava um desses pátios onde são deixados carros imprestáveis ou apreendidos pelos bancos. Um muro alto e imundo demarcava o fim do terreno ao fundo e à esquerda, mas, à direita, havia uma parede também imunda. O chão estava coberto de papéis e folhas e recendia a uma sujeira acumulada por não sei quantos anos. Imersos na sombra, caminhamos rente à parede até um retângulo de luz que, na verdade, era uma porta que dava para uma escada. Etrusco surgiu no último degrau e nós o seguimos até o interior de uma suja cozinha. Da cozinha passamos para uma sala onde, sentada num sofá, havia uma garota bastante magra. Ela estava descalça e trajava um vestido largo, velho e feio; o que me dava uma idéia muito precisa de seu corpo. Ela fumava-falava bastante e o azul dos seus olhos irradiava uma promiscuidade cintilante.

Disse para Etrusco o nome da chácara onde iríamos e ele afirmou que a garota nos acompanharia. No carro tive vergonha de falar dos planos A e B e segui em silêncio. Quando a avenida acabou e virou estrada, afundamos nas trevas e, à medida que acelerava o veículo e mirava as placas de sinalização, crescia um medo e uma excitação parecidos com que eu havia sentido ao conhecer a garota – ora risonha, ora entorpecida – que ia no banco de trás. Às vezes eu olhava pela janela e percebia que, no extremo horizonte, as sombras esmaeciam ou eram recortadas por silhuetas de árvores e morros ainda mais escuros. Entrei com o carro no posto de gasolina onde Etrusco trabalhava e que, devido a uma incrível coincidência, ficava bem na frente da chácara, bastava atravessar a pista.

Após estacionar o veículo debaixo de uma árvore onde cresciam algumas flores (pétalas brancas e roxas e amarelas), caminhamos – sob uma luz branca e fantasmagórica – por um posto habitado apenas por carrocerias de caminhões e esqueletos de carros e bombas de combustível (algumas imprestáveis; muito forte o cheiro de ferrugem e gasolina) e gatos e cães. Quando a luz acabou, perto do acostamento, quase caímos barranco abaixo (a menina de vestido precisou apoiar-se em Cartago). Na estrada, os carros passavam muito velozes e muito próximos e, enquanto atravessamos a pista correndo, respirei o forte cheiro que me ganhava o rosto – era o cheiro de mato, terra e asfalto, um odor bem mais ávido do que o provara ao anoitecer, enquanto caminhava pela Praça da Catedral. Ainda olhei para o horizonte, vi as estrelas gordas, depois as luzes da cidade aos meus pés, e pensei que talvez não existam dias alegres: talvez seja possível apenas falar em dias bonitos.

sábado, 22 de setembro de 2007

i want you

Com o dinheiro que recebemos após a morte da avó compramos um computador novo. O outro já contava com mais de dez anos e servia apenas para escrever: pesquisar na rede, ouvir uma música, assistir a um vídeo – tudo isso era impossível.

O computador novo – que não seria apenas meu, como o velho, mas de toda a família – ficaria no quarto antes ocupado pela avó. No processo de limpeza, doamos a cama a um asilo e pintamos as paredes de branco (lembro-me das tardes de sol e do cheiro de tinta e do esforço em trazer aquele cômodo de volta à realidade dos vivos, e quando penso nisso, hoje, acredito que a morte – ou a sua presença – cria lugares dentro do quais é possível encontrar abrigo e depois, quando esses lugares desaparecem ou tornam-se ordinários, o que vem é algo como uma nostalgia da morte).

Com o computador novo, a minha primeira resolução foi baixar, da rede, discos que julgava importantes. Em apenas um mês, gravei mais de dez discos, e os que mais me agradaram foram Highway 61 e Blonde on Blonde. Também descobri as rádios que transmitiam via internet e, quando não escutava Bob Dylan, sintonizava em estações de lugares como Ohio, Novo México, Califórnia. Gostava, sobretudo, quando a voz do locutor interrompia as canções ou lia algum anúncio para a população local. Nessas horas tinha idéias desconexas: era como encontrar um elo físico com as telas de Hopper e as andanças de Sal Paradise e as miúdas (pois lia Faulkner-Chandler-Kerouac-Carver em traduções para o português de Portugal) à espera dos forasteiros e, à margem das estradas, criando torvelinhos de poeira vermelha e despenteando árvores e pessoas, o vento do deserto. Sabia que à noite esse vento perverso soprava Sunset Boulevard acima, e, para um rapazote afobado como eu, tudo se resumia em encontrar uma boa foda.

No entanto, por mais que sintonizasse rádios do Texas ou ouvisse Dylan cantando i want you, nenhuma menina surgiu naquelas semanas. Quando me cansava do computador, saía para dar uma volta pela cidade. Num desses passeios descobri as ruas arborizadas e desertas perto do hospital onde a avó tinha morrido. O que mais gostava, nessas ruas, era o silêncio, a completa ausência de carros e de gente.

Foi apenas no começo de dezembro que descobri o quanto estava atordoado. Creio que começou quando, ao passar o ano em revista, percebi que eu tinha sido um completo fracasso: ainda estava sem emprego e, mais do que isso, tinha tido um desempenho sofrível em todos os concursos prestados. Como se isso não bastasse, gastara um tempo monstruoso lendo e escrevendo e descobrir isso, naqueles primeiros dias de dezembro, fez com que viesse à tona uma profunda repugnância por mim mesmo. Assim assim, mantive a rotina dos últimos meses, mas com uma diferença: agora, talvez devido ao vício num estranho refrigerante feito de guaraná e maçã, tinha problemas urinários e ia dormir cada vez mais tarde.
Aliás, o plano para se livrar do mal-estar era simples: esperar a segunda quinzena do mês, época na qual o comércio fica aberto durante a noite. Julgava que uma série de passeios noturnos (e no final do mês as festas em família) acalmaria o meu espírito. Até me lembro da primeira dessas caminhadas, no dia 16 ou 17 de dezembro. Peguei a rua da Praça dos Gatos e caminhei, sem desvios, até o Calçadão da Rua do General. Lembro-me que no caminho vi uma garota muito bonita: pele clara, cabelos à altura do pescoço, seios como pequenas laranjas, um corpo magro e o ar espiritual que imaginava nas meninas que deviam ouvir as mesmas músicas que eu. Mas ela me dirigiu uma olhar assustado e virou uma esquina. Logo depois cheguei à Rua do General e tomei um desvio para chegar até a Praça do Teatro através da Rua Duque de Caxias: quarteirões tomados por prostitutas e viciados e lojas que vendiam velas e quadros ridículos e inscrições para sepulturas. Na Praça do Teatro, ao passar diante do chafariz, senti o ar mais úmido e tangível e mais uma vez (agora já no rumo do cinema da Rua São Sebastião, onde é possível tomar cerveja junto ao balcão de mármore, e mais além, rumo às luzes que piscavam no prédio da Associação Comercial, e depois rumo à parte residencial do centro, repleta de ruas escuras e silenciosas e arborizadas, com prédios do tamanho de torres em ambos os lados da calçada) acreditei que, cedo ou tarde, encontraria o vento do deserto e o perfume dos jasmineiros.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

blow up

Pedro sofreu o acidente que o deixou coxo em dezembro, e a sua esposa, se me recordo bem, teve machucados ainda mais horríveis. Portanto o natal foi pouco comemorado: após uma ceia breve e saudações à meia-noite, todos foram dormir. Eu estava sem sono e pensei em pegar o carro e dar uma volta pela cidade, talvez ir até o Radio City.

Na tarde seguinte liguei para um amigo e combinamos de nos encontrar no salão de bilhar. Assim que iniciamos a disputa, começou a chover. Junto ao balcão, o homem que administrava o lugar jogava um estranho jogo de cartas com outro sujeito. Às vezes esse outro sujeito gritava. Perto deles, comendo de um prato que recendia a gordura antiga, estava sentada uma adolescente – rosto claro ungido pelo suor e pela gordura que se emanava da chapa de grelhar hambúrgueres, os seios salientes (talvez engordurados também) sob o fino tecido da blusa, cabelos à altura do pescoço. À medida que a chuva ficava mais forte, a madeira dos tacos tornava-se pegajosa e não conseguimos nos divertir. Antes do crepúsculo eu já tinha voltado para casa e, quando a noite começou a chegar e parou de chover, veio, dos fundos, um cheiro de bananeiras molhadas.

Nos dias que se seguiram, eu e Cartago voltamos a perambular pela cidade velha. As lojas – após a alegria natalina – estavam todas fechadas. A prefeitura ainda não tinha dado início aos trabalhos de limpeza, e as ruas encontravam-se atulhadas de papel picado e jornais de propaganda. Chovia forte quase todas as tardes, mas depois vinha o sol, e ascendia um mormaço doente e preguiçoso. A impressão que se tinha era de que a água estava estagnada há não sei quantas semanas e por isso apodrecera.

Na última tarde do ano também vagamos pelo centro: primeiro uma caminhada pelas ruas quietas e ensolaradas (aqui e ali explodiam bombas, e ao mormaço fundia-se o cheiro de pólvora), depois algumas partidas no salão de bilhar e por fim uma visita ao shopping, que tinha todas as lojas fechadas e, na praça de alimentação, as cadeiras empilhadas. Era a última sessão de cinema do ano e havia poucas pessoas na sala de exibição. Sentámo-nos e, enquanto esperávamos o filme, vimos chegar um grupo formado por uma mulher e duas raparigas de quinze ou dezesseis anos. As meninas não pareciam ser irmãs ou primas – o tom da pele, a cor dos cabelos, os ossos do rosto, as sombras ao redor dos olhos, os gestos: nada indicava parentesco e o único aspecto que tinham em comum era uma magreza desengonçada (era como se o silêncio e a melancolia – uma tristeza apenas adivinhada, apenas imaginada – tornassem o ar mais espesso ou rarefeito; como se as duas meninas, ou melhor, como se os seus dois corpos magros ainda não estivessem acostumados a variações na densidade das horas).
Quando saímos do cinema e ganhamos a rua, o crepúsculo ia pela metade. Tinha sido uma tarde sem chuvas e um sopro quente varria os papéis e as copas das árvores. Bombas ainda explodiam aqui e ali (agora com mais frequência). Do alto dos postes descia uma luz que, misturada à poeira do entardecer, assumia um tom alaranjando, enquanto o céu poente oscilava entre matizes pálidos e de um azul muito escuro. Por quase uma quadra, a mulher e as meninas caminharam diante de nós, e durante todo o tempo tivemos a impressão (agora também em relação à mulher) de magreza destroçada, aniquilada. Era como olhar para o retrato de alguém – um retrato tirado durante um momento de introspecção – e adivinhar uma morte triste, talvez por suicídio.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

moonlight serenade

Naquela noite soprava o vento seco do deserto, o Santa Ana, quente e seco, que desce pelos desfiladeiros e despenteia as pessoas, irritando-lhes a pele do rosto e dilacerando-lhe os nervos.

Assim inicia O Cheiro do Medo, novela de Raymond Chandler, e gosto de que pensar que por aqui, distante do Mojave, também sopra o Santa Ana. Lembro-me de uma noite – eu tinha quinze ou dezesseis anos, era sexta de carnaval – na qual andei os poucos quarteirões que separavam a minha casa da quadra de futebol do Senhor José. Sentia-me ridículo por jogar bola numa noite que seria festejada pela maioria dos rapazes da minha idade. A partida estava marcada para as nove horas e no trajeto não avistei nem sequer uma pessoa. A luz que descia dos postes (uma claridade branca e fina) não penetrava nas sombras e nas copas das árvores. Das paredes das casas e do asfalto irradiava-se um hálito quente, nervoso – como se um único sopro devolvesse à noite o calor e o cheiro de sol que as pedras tinham armazenado durante o dia.

domingo, 16 de setembro de 2007

mortes

Após o jantar, liguei o computador e escrevi durante umas duas horas seguidas. Apesar de ser ruim passar as noites de sábado em casa, não havia tristeza ou ansiedade: no sábado da semana anterior eu tinha ido a uma festa e tinha conversado com uma bonita rapariga e tinha bebido cervejas e tinha reencontrado dois sujeitos – um deles estudara comigo em 1997-98, o outro fora meu colega durante o único semestre em que estive na faculdade de cinema, há oito anos.

Cansado de escrever, fui para a sala e liguei a televisão. Deviam ser dez horas e eu ainda não tomara banho. Corria a primeira semana de outubro e fazia calor, mas um calor que não chegava a ser repulsivo, pois soprava uma brisa amena e familiar (como se a brisa, antes de chegar até mim, tivesse percorrido uma cidade calma e esvaziada, povoada apenas por uma memória que não era, propriamente, memória – apenas sabia, e era um saber muito vago, quase imaginado, que sob aquela brisa eu já tinha vivido natais, e jogado futebol, e andado pelas ruas da cidade velha até o salão de bilhar da rua santiago, e gostado muito de alguém).

Quando a mãe passou por mim, perguntou se eu tinha ido ver a avó. Respondi que não. A mãe desapareceu e voltou logo depois. Disse-me que a avó estava tendo uma crise de gastrite e pediu que eu a olhasse enquanto ela e o pai se preparavam para levá-la até o hospital. Encontrei a avó na varanda. Sentei-me perto dela e, com um ramo de samambaia seca, comecei a brincar com um gato. Até fiz algum comentário sobre o animal. Notei que a avó, com um jornal na mão, mal conseguia se ventilar – tomei o jornal de suas mãos e fiz vento. Poucos minutos depois eu e a mãe amparamos a avó em sua caminhada até o carro.

Solitário em casa, voltei à tevê e terminei de assistir o programa que via antes de acudir a avó. Depois comecei a recolher os gatos. O mais difícil de todos – o Pequeno – não demorou a ser capturado, mas Joaquim estava sumido. Procurei em todos os cômodos possíveis e, após vasculhar o quintal da frente, fui para os fundos. Sentei-me perto da piscina. Quando ventava mais forte, era possível escutar o farfalhar das bananeiras. Um morcego deu um vôo raso sobre a face das águas e desapareceu na copa da mangueira (um dos vizinhos tinha, nos fundos da sua casa, um pomar). Lembrei-me das noites em que perseguia os gatos pelos telhados - muitas vezes, após apanhá-los, escondia-me em alguma sombra mais densa, ora observando a vida alheia, ora mirando os prédios da cidade velha (o topo dos edifícios envoltos por uma neblina-transparência rósea). Até quis passar o resto da noite no alto dos telhados, mas um miado fraco, vindo de um terreno vizinho (então um canteiro de obras) acusou o paradeiro de Joaquim. Apesar de antes já ter saltado na construção para apanhar um animal, era a primeira vez que pulava aqueles muros sozinho, sem que ninguém me ajudasse a subir de volta. Para a minha surpresa, os atos sairam conforme o planejado: após cair na construção escura e vazia, capturei o gato e o ergui até o muro (Joaquim fez o resto), depois tomei uma distância de sete ou oito metros e lancei-me numa corrida até o muro. Era o que precisava para alcançar a velocidade que me daria o impulso necessário para escalar. Enquanto corria, tive muito medo de pisar num prego enferrujado.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

gatos

Pequeno foi o primeiro gato que persegui pelos telhados. Lembro-me que as buscas tiveram início há seis ou sete anos, durante as férias de janeiro. Por volta da meia-noite, como saía pouco de casa, reunia-me com os meus pais para uma partida de baralho, mas antes eu deveria ajudar a avó, que vivia na casa ao lado, a recolher os gatos. Começava a procurá-los por volta das dez horas e o Pequeno – o mais ágil e arisco – era o último a ser pego.
Às vezes, quando estava no telhado, sentia o vento me gastar o rosto e pensava em amores desperdiçados e em lugares nunca conhecidos – como as sombras e a maresia da Havana de Hemingway. Em muitas noites os ventos traziam gritos de bêbados e melodias abafadas pela distância. Entristecia, mas era uma tristeza impregnada de nostalgia, pois também existia o medo de morrer, de perder aquela casa e aquelas madrugadas e aqueles rostos e a sensação de perseguir os gatos pelos telhados.
Depois disso, durante cerca de um ano, tornou-se rotina capturar os gatos antes de ir dormir. Na verdade, nunca deixei de zelar por eles; apenas, com o passar dos anos assumi uma posição acima na hierarquia: que a avó e a mãe guardassem os animais mansos, eu entrava em cena quando algum felino demorava mais a vir ou fugia pelos telhados e recusava-se a descer.
Lembro-me de setembro de dois anos atrás. Um gato de pêlo loiro não voltou durante a madrugada. Embora incomum, não estranhei a ausência e só fui me preocupar no dia seguinte. Ainda durante a tarde, passei horas no telhado, chamando o animal e observando qualquer sombra que se movesse. Também vaguei pelos quarteirões da vizinhança, sempre de olho nos telhados. Após o entardecer chegou a notícia de que o cadáver de um animal fora abandonado em meio aos sacos de lixo que se amontoavam nos fundos da Igreja Coração de Maria. Eu e o pai reviramos o lixo, mas não encontramos o animal. Passei quase toda a noite no telhado. Depois, no começo da madrugada, saí para andar pelo bairro. A poeira acumulada pela seca que durava há semanas tinha formado uma neblina amarela, e esta névoa pardacenta tinha o efeito de esmaecer a luz (também amarela) emanada pelos postes. Nos quarteirões ao redor da praça topei com velhos, prostitutas, travestis. Quando vi os homens que recolhem o lixo, fui até eles. Disseram-me que, horas atrás, tinham recolhido o corpo de um gato de pêlo avermelhado. “É um gato gordo, a cabeça estava estourada, parecia esmagada por um carro ou ônibus.” No caminho de volta para casa, quis chorar.
Na tarde do terceiro dia o gato apareceu nos telhados. Eu e a irmã começamos a gritar. Depois que pegamos o animal, o mantivemos em cativeiro por duas semanas. Após as refeições ele era levado até o quintal, para urinar ou respirar ar puro, e um de nós era incumbido de vigiá-lo. Estávamos alegres e não podíamos deixar aquela existência rediviva e irracional e precária – ato supremo da bondade de deus ou do universo – esgueirar-se pelos telhados e desaparecer.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

velejando para bizâncio

Eu voltava para casa quando, devido às obras na Avenida Bizâncio (eu dirigia com sono e o brilho silencioso-fluorescente-alaranjado dos cones que margeavam o canteiro de obras assumiram, para mim, a materialização da minha insônia ou sonambulismo) fui obrigado a tomar um desvio que me lançou nas ruas de um bairro que me era desconhecido.
Na madrugada seguinte, assim que pus o veículo em movimento, lembrei a mim mesmo que deveria evitar a Avenida Bizâncio. Mas o sonambulismo habitual apagou qualquer resolução de buscar um caminho alternativo. Quando me dei conta, estava diante do peremptório e silencioso brilho do cones. Tomei o desvio, mas desta vez prestei atenção no bairro que visitava. Todas as casas tinham dois andares e, na frente de cada residência, havia um árvore. Lembrei-me de quando era menino e ultrapassava, em busca de marcas de cigarros, as fronteiras impostas por meus pais.
Na noite seguinte, fui ridículo. Ao ligar o carro, repeti a necessidade de evitar Bizâncio, mas sabia que confabulava em segredo, sabia que voltaria às obras e ao desvio, e desta vez não seria levado pelo sonambulismo. E, enquanto cruzava as ruas do bairro, o que brotou em mim foi algo distinto do medo ou da excitação: era como ter consciência (um sobressalto íntimo e gelado e viscoso) do tempo. Pensei no que vivia, no que acontecia comigo: estava às vésperas de uma prova importante, e, durante a preparação, eu alternara entre uma insegurança repleta de agonia e a certeza de estar aproveitando a maior chance que já me fora dada. Além disso, vivia um calmo relacionamento amoroso, mas também a consciência do amor era atingida no nervo. Em outras palavras, eu me via diante da alegria, mas isso não impedia que a alegria se apresentasse repleta de elipses, de lacunas. E quanto mais vida eu poderia oferecer a esta alegria? Quanto mais me seria oferecido? Quanto tempo antes das obras terminarem e o desvio ser riscado da existência da cidade? Quanto tempo antes da morte de um animal ou de uma pessoa amada?

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

mais notas sobre o estio

Nunca soube por que o Senhor Hambúrguer ficava aberto durante as noites. Lembro-me de que numa sexta eu e Arkansas jantávamos antes de seguirmos para o cinema da Rua São Sebastião. Todas as outras mesas estavam vazias e a luz que descia – uma claridade branca e onipresente, que não permitia que qualquer recanto do estabelecimento se ocultasse nas sombras – era, a um só tempo, doce e alheia.
Após o jantar, andamos os poucos quarteirões que separavam o Senhor Hambúrguer do cinema. No caminho encontramos uma menina de olhos esverdeados (mas que sob a luz amarela irradiada pelos postes assumiam um brilho crepuscular), ombros magros, pele clara e cabelos ondulados. Ela riu para Arkansas e conversaram por alguns minutos. Depois que ela foi embora, Arkansas disse-me uma das frases que consagrou aquele verão às garotas perdidas.
“Sabe esta miúda? Fui apaixonado por ela há seis ou sete anos”

estio

Lembro-me de quando escrevia poemas e dos sábados em que caminhava até as ruas do centro e gastava as tardes jogando sinuca. Voltava para casa às sete ou oito horas da noite. Como era março – e como naquele ano o final do verão foi marcado pela ausência de chuvas – eu caminhava sob um entardecer. No ar poeirento e com cheiro de sol antigo e terra queimada, à medida que eu cruzava os quarteirões da cidade velha, um fedor de gordura podre ganhava o meu rosto. Passava as noites de sábado em casa e escrevia sobre isso: a agonia das samambaias no tempo seco. Às vezes ouvia Trio Los Panchos ou Leonard Cohen.